sábado, 23 de julho de 2016

Perdoar

O mais difícil é não fazer nada: ficar só diante do cosmos. Trabalhar é um atordoamento. Ficar sem fazer nada é a nudez final. Há uns que não aguentam. Então vão se divertir. Estou escrevendo de madrugada. Talvez porque não queira ficar só diante do mundo. Mas de algum modo estou acompanhada. Não sei explicar. É bom.
Contaram-me que numa novela o homem não sabia para que serviam as lavandas (tacinhas cheias de água morna, com gotas de limão, por exemplo, para lavar as pontas dos dedos depois do jantar) (embora não se tenha comido com as mãos). Então me lembrei de um tempo em que eu cheguei ao refinamento (!?) de fazer o garçom em casa passar as lavandas a cada convidado do seguinte modo: cada lavanda com uma pétala de rosa boiando no líquido. Seria um ritual de bem-fazer? Hoje não faria mais isso. Ou faria? Não sei onde estão minhas lavandas. Com o tempo foram sumindo. Talvez roubadas. Ficou-me a lembrança.
Estou escrevendo com muita facilidade, e com muita fluência. É preciso desconfiar disso.
Lembro-me de uma embaixatriz em Washington que mandava e desmandava nas mulheres dos diplomatas que lá serviam. Dava ordens brutas. Dizia por exemplo à mulher de um secretário de embaixada: não venha à recepção vestida com um saco. A mim – não sei por quê – nunca disse nada, nenhuma palavra grosseira: respeitava-me. Às vezes se sentia angustiada, e me telefonava perguntando se podia ir me visitar. Eu dizia que sim. Ela vinha. Lembro-me de uma vez em que – sentada no sofá de minha própria casa – ela me confiou em segredo que não gostava de certo tipo de pessoa. Fiquei surpreendida: pois eu era exatamente essa pessoa. Ela não sabia. Desconhecia-me ou pelo menos parte de mim.
Por pura caridade – para não embaraçá-la – não lhe contei o que eu era. Se contasse ela ficaria numa situação péssima e teria que me pedir desculpas. Ouvi calada. Depois ela ficou viúva e veio para o Rio. Telefonou-me. Tinha um presente para mim e pediu que eu a visitasse. Não fui. Minha bondade (?) tem limites: não posso proteger quem me ofende. Ou posso? Posso. Tenho sido obrigada a perdoar muito.
Clarice Lispector, in Aprendendo a viver

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