sexta-feira, 22 de julho de 2016

Pequeno Sísifo

Primeira lição do incômodo: o calcanhar raspando na parte de trás do tênis e, pouco a pouco, empurrando a meia para baixo. Eu tentava andar mais devagar, tentava pisar reto, caminhar feito um robô, mas não adiantava: lá ia a meia em sua inexorável jornada rumo à planta do pé.
Caso estivesse ocupado demais para tomar as devidas providências, fugindo num pega-pega, num esconde-esconde ou num duro ou mole, apenas me agachava num canto, enfiava dois dedos dentro do tênis e, do jeito que desse — se desse —, puxava a meia um pouco pra cima. Sabia que era uma ação paliativa, que muito em breve ela estaria toda embolada lá na frente e eu seria obrigado a seguir o protocolo: sentar-me num banco, tirar os tênis, as meias, vesti-las e me calçar novamente.
Terminada a função, voltava ao pega-pega, ao esconde-esconde, ao duro ou mole, gozando por alguns minutos da alegria do dever cumprido, como se tivesse acabado de tomar banho, fazer a lição de casa ou comer um prato de legumes. Dez passos adiante, contudo, mastigada pelo insaciável maxilar do tênis no calcanhar, lá ia a meia descendo outra vez: lá ia eu, pequeno Sísifo, ladeira abaixo, ladeira acima.
Antonio Prata, in Nu, de botas

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