quarta-feira, 20 de julho de 2016

On the Road – Pé na estrada (trecho)

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Foi uma viagem ordinária, com bebês chorões e sol escaldante, e caipiras que embarcavam cada vez que o ônibus parava em tudo quanto é cidade da Pensilvânia, até que atingimos as planícies de Ohio, e então realmente as rodas rodaram, direto até Ashtabula e rasgando Indiana noite adentro. Minha chegada a Chicago ocorreu pouco depois da aurora, arranjei um quarto na ACM e caí na cama com uns poucos trocados no bolso. Curti Chi depois de um reconfortante dia de sono.
O vento que vinha do lago Michigan, bop-jazz no Loop, longas caminhadas ao redor de South Halsted e North Clark e, na madrugada silenciosa, uma longa jornada pela selva de pedra, quando uma radiopatrulha me seguiu como suspeito. Nessa época, 1947, o bop enlouquecia a América. Os rapazes no Loop seguiam soprando, mas com um ar melancólico, porque o bop atravessava um momento indeciso entre o período ornitológico de Charlie Parker e a nova era, que começou com Miles Davis. E, enquanto eu ouvia aquele som noturno que o bop representava para todos nós, pensei nos meus amigos espalhados de um canto a outro da nação, e em como todos eles viviam frenéticos e velozes, dentro dos limites de um único e imenso quintal. Na tarde seguinte, segui para o oeste pela primeira vez em minha vida. Era um lindo dia ensolarado, perfeito para cair na estrada. Fugindo da impossível complexidade do tráfego de Chicago, peguei um ônibus até Joliet, Illinois, tangenciei a penitenciária de Joliet, escapei em direção à periferia da cidade depois de uma caminhada por suas minúsculas ruas frondosas, e deixei que meu dedo apontasse o caminho. De ônibus — todo o percurso de Nova York até Joliet, e eu tinha gasto mais da metade de minha grana.
A primeira carona foi num caminhão carregado de dinamite, com bandeira vermelha e tudo, uns cinquenta quilômetros pela esverdeada amplitude do Illinois, sendo que o caminhoneiro apontou o lugar onde a Rota 6, onde a gente estava, se juntava com a Rota 66, antes de ambas mergulharem nas inacreditáveis distâncias do oeste. Por volta das três da tarde, depois de uma torta de maçã e um sorvete num bar de beira de estrada, uma mulher parou seu pequeno cupê para mim. Corri atrás do carro num arrepio de intensa satisfação. Mas era apenas uma mulher de meia-idade, que até podia ser minha mãe, e tudo o que queria era alguém para ajudá-la a dirigir até Iowa. Iowa! Que jóia! Não ficava muito longe de Denver, e assim que eu chegasse a Denver poderia descansar. Ela dirigiu as primeiras e poucas horas, chegando a parar sei lá onde, para visitarmos uma velha igreja qualquer como se fôssemos turistas, e só depois peguei a direção; mesmo não sendo um grande motorista, dirigi numa ótima, cruzando o restante do Illinois até Davenport, Iowa, via Rock Island. E foi então que vislumbrei pela primeira vez meu querido rio Mississipi, raso sob a bruma do verão, quase seco, exalando o odor de sua fertilidade, que cheira como o próprio corpo vivo da América, lavada por ele. Rock Island, trilhos de trem, barracos, o insignificante centro da cidade e, do outro lado da ponte, Davenport, o mesmo clima, o mesmo cheiro de serragem sob o sol abafado do meio-oeste. E então a mulher teve que seguir por- outra estrada até sua cidade natal em Iowa, e eu saltei fora.
O sol se punha, eu andava, tinha bebido umas cervejas geladas, ia em direção aos arrabaldes da cidade, foi uma longa caminhada. Os homens voltavam do trabalho para casa, usavam chapéus de ferroviários, chapéus de beisebol, todos os tipos de chapéus, como depois do expediente em qualquer cidade de qualquer lugar. Um deles me deu uma carona até o topo de uma colina, e me deixou numa vasta encruzilhada, isolada na beira da pradaria. Que lugar esplêndido! Os únicos carros que passavam eram carros de fazendeiros, eles me lançavam olhares desconfiados e zuniam no descampado, o gado ia para casa. Nem ao menos um caminhão. Somente uns poucos carros, sibilantes. Um garotão passou com sua caranga envenenada e o cachecol esvoaçante. O sol se pôs completamente, e eu estava lá, de pé, envolto pelas sombras púrpura. Fiquei realmente com medo. Não havia uma única luz nos campos de Iowa, em um minuto eu não seria visto por mais ninguém. Felizmente, um sujeito que voltava a Davenport me deu uma carona até o centro da cidade. Só que ali estava eu, de volta ao ponto de partida.
Fui sentar na rodoviária e refletir sobre minha situação. Devorei outra torta de maçã e mais um sorvete — na verdade, esses foram praticamente os únicos alimentos que comi em minha viagem através do país, embora sejam deliciosos, além de nutritivos, é claro. Decidi arriscar. Peguei um ônibus no centro de Davenport, depois de passar meia hora paquerando a garçonete no bar da rodoviária, e retornei aos limites da cidade, mas dessa vez para a proximidade dos postos de gasolina. Ali, os grandes caminhões roncavam, vrumm, e em dois minutos um deles parou aos solavancos para me apanhar. Corri, exultante. E que caminhoneiro, homem! Um motorista enorme, maciço e robusto, com olhos esbugalhados e uma voz rouca e arranhada, daqueles que batem a porta com violência e pisam fundo, fazendo a máquina rodar sem dar a menor bola para mim. E, assim, pude descansar meu espírito fatigado, já que um dos maiores tormentos de se viajar de carona é ter de falar com incontáveis pessoas, distraí-las até que elas percebam que não cometeram um erro ao apanhar você, e isso resulta num esforço enorme, se o percurso é longo e você não está a fim de dormir em hotéis. O cara simplesmente berrava, mais alto do que o ronco do motor, e tudo o que eu tinha a fazer era gritar uma resposta, e assim relaxamos. Ele deixou aquele monstrengo rolar até Iowa City sem esforço aparente, sempre berrando histórias engraçadíssimas, contando como burlava a lei em cada cidade que possuía limites de velocidade estritos, repetindo milhares de vezes: “Esses porcos de merda nunca conseguiram me estrepar”. Quando rodávamos pelas proximidades de Iowa City, ele ligou a sinaleira e diminuiu a velocidade, para que eu saltasse, o que fiz, carregando minha mochila; ao perceber o sinal, o outro caminhão parou para me recolher, e assim, num piscar de olhos, lá estava eu mais uma vez numa espaçosa cabina elevada, preparadíssimo para avançar centenas de quilômetros noite adentro, e sentindo-me maravilhosamente bem. Esse novo caminhoneiro era tão louco quanto o primeiro e gritava tanto quanto aquele, e tudo o que eu tinha a fazer era me aconchegar e deixar rolar. Agora, sim, podia ver a silhueta de Denver agigantando-se à minha frente, como uma Terra Prometida, lá fora entre as estrelas, através das pradarias do Iowa e pelas planícies do Nebraska, e tive uma visão grandiosa de San Francisco mais adiante, duas noturnas pedras preciosas. Ele fincou o pé na tábua, contando histórias por algumas horas, até que numa cidade do Iowa, onde anos mais tarde Dean e eu fomos detidos sob suspeita de estarmos dirigindo um Cadillac roubado, ele dormiu no assento por algumas horas. E eu também dormi, mas antes dei um pequeno passeio ao longo de solitárias paredes de tijolos, iluminadas por uma única lâmpada, admirando a pradaria que brotava ao final de cada estreita esquina, e o cheiro do milho misturado ao orvalho da noite.
Jack Kerouac, in On the Road – Pé na estrada

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