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Tinha
dez anos. Mas aquilo já começara antes, muito antes do dia em que –
afinal – escreveu a idade com dois algarismos e viu pela primeira
vez o campo de caça onde seu pai, o Major Spain, o velho General
Compson e os outros passavam duas semanas todo mês de novembro e
outras duas todo mês de junho.
Então,
já herdara deles – sem nunca o ter visto sequer – o medonho urso
da pata aleijada numa armadilha. O urso que, numa área de quase
cento e cinquenta quilômetros de circunferência, ganhara direito a
um nome, a um tratamento, como um homem.
Há
muitos anos que ele ouvia a história, a lenda dos celeiros roubados,
de leitões e cevados, de vitelos levados inteiros para a floresta e
devorados; de armadilhas e fossos desfeitos e cães mutilados ou
mortos; de chumbadas de caçadeiras e até de carabinas atiradas
quase à queima-roupa com menos resultado do que se fosse um punhado
de ervilhas atirado por uma criança. Histórias de um corredor de
ruína e destruição, que começava antes do seu nascimento e
através do qual corria, não muito depressa mas com a deliberação
implacável e irresistível de uma locomotiva, o vulto hirsuto e
medonho. O urso.
Já
antes de ver o urso ele lhe surgia tal como era, especialmente nos
sonhos. Muito antes de ter sequer avistado os bosques onde o animal
deixava a sua pegada torta, era capaz de descrevê-lo, felpudo,
enorme, de olhos vermelhos, antes grande do que maldoso, grande
demais para os cães que tentavam acossá-lo, para os cavalos que
tentavam derrubá-lo, para os homens e as balas que o perseguiam,
grande demais para a própria região a que estava limitado. Parecia
vê-lo inteiro, muito antes de ter visto a solidão selvagem e
condenada, de orlas constantemente e covardemente cortadas e roídas
por homens com machados e arados, que tinham medo dela por ser
selvagem, homens que sem conta e sem nome uns para os outros na
região onde o próprio urso ganhara um nome. Viu-o, mesmo, muito
antes de imaginar a região através da qual corria não só um
animal mortal mas um sabe Deus o quê, indomável e invencível,
vindo de um tempo já morto; um fantasma, epítome e apoteose daquela
vida selvagem que o enxame de homens covardes lacerava numa fúria de
ódio e de terror, como pigmeus em torno das patas de um elefante
sonolento, e sobre o velho urso solitário, indomável e só, viúvo
sem filhos e só, absolvido da mortalidade e só.
Até
os dez anos de idade, quando chegava o mês de novembro, o rapaz via
o carroção com os cães, as camas, a comida, as armas, o pai, o
negro Jim da Tennie e o índio Sam Fathers (filho de uma escrava e de
um chefe de índios Chicksaw), todos partindo pela estrada para a
vila, para Jefferson, onde o Major e os outros se reuniam. No
entender do rapaz, aos sete, oito e nove anos, eles não iam ao Vale
Fundo para caçar ursos ou veados. Iam para ter um encontro com o
urso, que nem sequer pensavam em matar. Tanto é que voltavam após
duas semanas de caça, sem troféus, sem peles nem cabeças. Nem ele
esperava por elas. Nem temia que o carroção trouxesse alguma coisa.
Acreditava que quando fizesse dez anos e o pai o levasse também à
caça nas duas semanas de novembro, ele seria apenas um dos
participantes, com o pai, o Major e o General Compson, com os outros,
com os cães que tinham medo de o acossar e as caçadeiras que nem
sangue lhe faziam: seria mais um no cortejo anual de homenagem à
imortalidade do velho urso.
Até
que ouviu os cães. Foi na segunda semana da sua primeira caçada.
Ficou parado ouvindo, com o Sam Fathers, de encontro a um enorme
carvalho, ao lado do cruzamento que vigiava já por nove manhãs.
Ouvira-os já uma vez antes disso, numa das manhãs da semana
anterior. Ouvira um murmúrio que ecoava pelos bosques molhados,
crescendo em vozes separadas, possíveis de reconhecer e chamar pelo
nome. Levantou a arma com o dedo no cão – tal como Sam ensinara –
e de novo ficou imóvel, enquanto o alarido, a corrida invisível, se
aproximava, passava, morria ao longe. Quase lhe parecia ver o veado
macho, fulvo, cor de fumo, retesado pela velocidade, voando,
desaparecendo, os bosques, a solidão cinzenta ainda a vibrar mesmo
depois da algazarra dos cães ter desaparecido.
– Agora
solte o cão – disse Sam.
– Você
já sabia que eles não vinham pra'qui.
–
Sabia. Quero que aprenda o que deve fazer
quando não disparar. É depois que se perde a oportunidade de atirar
que acontecem desastres aos homens e aos cães. Seja como for –
disse depois – não passava de um veado.
E
agora, na décima manhã, ouviu outra vez os cães. Aprontou a
espingarda comprida e pesada – como Sam ensinara – ainda antes
que o índio desse ordem. Mas desta vez não havia veado, nem coro de
cães a correr sobre um rastro fácil. Era um latir fatigante, uma
oitava acima, com qualquer coisa de indeciso e até de abjeto; que
parecia não se mover e levava tempo enorme para ficar longe do
alcance do ouvido. E que então deixava no ar um eco agudo, levemente
histérico, quase lamentoso, humano. Aquilo não podia ser a
perseguição a qualquer animal fugitivo, cor de fumo, herbívoro. E
o Sam, que lhe ensinara a armar a espingarda antes de mais nada, a
tomar posição de onde pudesse ver tudo e depois não se mexer nem
bulir na espingarda, viera para o lado dele. O rapaz ouvia o índio
respirando sobre o seu ombro e via a curva arqueada das narinas do
velho.
– Ah
– disse Sam – nem se dá ao trabalho de correr. Vem andando.
– É
o velho Ben – a voz do rapaz estava excitada. – Mas tão aqui em
cima?
– Faz
isso todos os anos – disse o índio. – Uma vez. Provavelmente
para ver quem veio este ano, se é gente que sabe atirar ou não.
Para ver se já temos o cão capaz de acossá-lo e meter-lhe os
dentes. Vai levar os cães todos ao rio e depois mandá-los para
trás.
O
menino ficou ouvindo. Sam disse vamos voltar e depois disse, mais
para si próprio:
– Vai
ver o aspecto deles, quando chegarem de volta ao acampamento.
Quando
chegaram ao acampamento os cães já estavam lá, dez deles,
encolhidos atrás da cozinha. O rapaz e o índio acocoraram-se para
espreitar na escuridão onde estavam amontoados, silenciosos, de
olhos reluzentes que acendiam e apagavam. E nem um único som. Só
aquele pressentimento de qualquer coisa mais forte do que um cão e
não apenas um animal ou fera. Nada houvera diante daquele latir
abjeto e quase doloroso senão a solidão selvagem.
E
quando o undécimo cão chegou, ao meio-dia, todos olharam, até o
velho tio Ash – que se dizia cozinheiro antes de mais nada. E Sam
tratou-o com terebentina e massa de untar os eixos, passando mãos
cheias na orelha em tiras e na espádua. E para o rapaz, o autor de
tudo aquilo continuou a ser a solidão selvagem que castigara com uma
pancada leve a temeridade do cão. Aquilo não parecia obra de uma
criatura viva, mortal.
– Tal
e qual um homem – disse Sam. – Tal e qual. Foi demorando,
demorando o mais possível, adiando a ocasião de ter coragem,
sabendo perfeitamente que mais tarde ou mais cedo teria de ganhar
coragem para poder continuar merecendo o nome de cão; e sabendo
antecipadamente o que lhe aconteceria, quando a coragem chegasse.
Nessa
tarde, montado na mula caolha do carroção, que não se importava
com o cheiro de sangue (nem, como lhe contaram, com o dos ursos), e
com Sam ao lado montado na outra, cavalgaram durante mais de três
horas naquele dia de inverno. Não seguiram nenhuma senda, nenhum
atalho que ele percebesse. Em pouco tempo estavam num lugar
desconhecido para eles. Então, compreendeu porque é que Sam lhe
dera a mula menos espantadiça. A outra parou, tentou voltar a fugir.
Mesmo quando o índio desceu e agarrou as rédeas, bem curto, ela
continuou bufando, puxando, querendo voltar. Sam incitava a mula a
correr, gritando com ela, porque não queria arriscar amarrá-la.
Finalmente, ela avançou, bufando sempre. O rapaz não teve
dificuldade com a sua, mas também desceu e segurou as rédeas,
curto.
De
pé, ao lado de Sam, no escuro da tarde que morria, olhos no tronco
apodrecido e virado, estripado e riscado de marcas de garras, o rapaz
viu na terra molhada, ao lado, a pegada da enorme pata de dois dedos,
torta. Agora sabia que cheiro sentira quando fora olhar os cães
encolhidos debaixo da cozinha. Pela primeira vez compreendeu que o
urso que via antes, que aparecia nos seus sonhos desde que se
conhecia como gente e que devia ter existido antes nos sonhos do pai,
do Major e até do velho General Compson, que esse urso era um animal
mortal. E que – pensou – se eles tinham partido todos os anos no
mês de novembro para a caçada sem esperanças de voltar com o
troféu, não era porque este não pudesse ser abatido, mas porque
até aqui eles não tiveram ainda verdadeiras esperanças de caçá-lo.
–
Amanhã – disse ele.
–
Tentaremos amanhã – emendou Sam. –
Mas ainda não temos cão.
– Temos
onze. Contamos esta manhã.
Só
é preciso um. Mas não está aqui. Talvez não esteja em parte
alguma. A única maneira é ele dar de cara, por acidente, com alguém
que esteja armado.
– Não
seria comigo. Seria o Walter, ou o Major, ou…
– Podia
ser – disse o índio. – Amanhã tenha muito cuidado. Porque ele é
matreiro. É por isso que ainda não morreu. Se estiver cercado e
tiver de escolher alguém a quem atacar, escolherá você.
– Por
quê? – perguntou o rapaz.
– Como
é que ele vai saber… Você quer dizer que ele já me conhece, sabe
que é a primeira vez que venho, que ainda não tive tempo de… –
parou novamente e olhou para Sam bem nos olhos. O rosto do velho nada
revelava, a não ser quando sorria. Depois disse humildemente, sem
espanto algum: – Foi a mim que ele veio observar. E não foi
preciso vir aqui mais de uma vez, não é?
Leia
esse conto completo de William Faulkner, acessando aqui.
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