terça-feira, 19 de julho de 2016

O urso

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Tinha dez anos. Mas aquilo já começara antes, muito antes do dia em que – afinal – escreveu a idade com dois algarismos e viu pela primeira vez o campo de caça onde seu pai, o Major Spain, o velho General Compson e os outros passavam duas semanas todo mês de novembro e outras duas todo mês de junho.
Então, já herdara deles – sem nunca o ter visto sequer – o medonho urso da pata aleijada numa armadilha. O urso que, numa área de quase cento e cinquenta quilômetros de circunferência, ganhara direito a um nome, a um tratamento, como um homem.
Há muitos anos que ele ouvia a história, a lenda dos celeiros roubados, de leitões e cevados, de vitelos levados inteiros para a floresta e devorados; de armadilhas e fossos desfeitos e cães mutilados ou mortos; de chumbadas de caçadeiras e até de carabinas atiradas quase à queima-roupa com menos resultado do que se fosse um punhado de ervilhas atirado por uma criança. Histórias de um corredor de ruína e destruição, que começava antes do seu nascimento e através do qual corria, não muito depressa mas com a deliberação implacável e irresistível de uma locomotiva, o vulto hirsuto e medonho. O urso.
Já antes de ver o urso ele lhe surgia tal como era, especialmente nos sonhos. Muito antes de ter sequer avistado os bosques onde o animal deixava a sua pegada torta, era capaz de descrevê-lo, felpudo, enorme, de olhos vermelhos, antes grande do que maldoso, grande demais para os cães que tentavam acossá-lo, para os cavalos que tentavam derrubá-lo, para os homens e as balas que o perseguiam, grande demais para a própria região a que estava limitado. Parecia vê-lo inteiro, muito antes de ter visto a solidão selvagem e condenada, de orlas constantemente e covardemente cortadas e roídas por homens com machados e arados, que tinham medo dela por ser selvagem, homens que sem conta e sem nome uns para os outros na região onde o próprio urso ganhara um nome. Viu-o, mesmo, muito antes de imaginar a região através da qual corria não só um animal mortal mas um sabe Deus o quê, indomável e invencível, vindo de um tempo já morto; um fantasma, epítome e apoteose daquela vida selvagem que o enxame de homens covardes lacerava numa fúria de ódio e de terror, como pigmeus em torno das patas de um elefante sonolento, e sobre o velho urso solitário, indomável e só, viúvo sem filhos e só, absolvido da mortalidade e só.
Até os dez anos de idade, quando chegava o mês de novembro, o rapaz via o carroção com os cães, as camas, a comida, as armas, o pai, o negro Jim da Tennie e o índio Sam Fathers (filho de uma escrava e de um chefe de índios Chicksaw), todos partindo pela estrada para a vila, para Jefferson, onde o Major e os outros se reuniam. No entender do rapaz, aos sete, oito e nove anos, eles não iam ao Vale Fundo para caçar ursos ou veados. Iam para ter um encontro com o urso, que nem sequer pensavam em matar. Tanto é que voltavam após duas semanas de caça, sem troféus, sem peles nem cabeças. Nem ele esperava por elas. Nem temia que o carroção trouxesse alguma coisa. Acreditava que quando fizesse dez anos e o pai o levasse também à caça nas duas semanas de novembro, ele seria apenas um dos participantes, com o pai, o Major e o General Compson, com os outros, com os cães que tinham medo de o acossar e as caçadeiras que nem sangue lhe faziam: seria mais um no cortejo anual de homenagem à imortalidade do velho urso.
Até que ouviu os cães. Foi na segunda semana da sua primeira caçada. Ficou parado ouvindo, com o Sam Fathers, de encontro a um enorme carvalho, ao lado do cruzamento que vigiava já por nove manhãs. Ouvira-os já uma vez antes disso, numa das manhãs da semana anterior. Ouvira um murmúrio que ecoava pelos bosques molhados, crescendo em vozes separadas, possíveis de reconhecer e chamar pelo nome. Levantou a arma com o dedo no cão – tal como Sam ensinara – e de novo ficou imóvel, enquanto o alarido, a corrida invisível, se aproximava, passava, morria ao longe. Quase lhe parecia ver o veado macho, fulvo, cor de fumo, retesado pela velocidade, voando, desaparecendo, os bosques, a solidão cinzenta ainda a vibrar mesmo depois da algazarra dos cães ter desaparecido.
Agora solte o cão – disse Sam.
Você já sabia que eles não vinham pra'qui.
Sabia. Quero que aprenda o que deve fazer quando não disparar. É depois que se perde a oportunidade de atirar que acontecem desastres aos homens e aos cães. Seja como for – disse depois – não passava de um veado.
E agora, na décima manhã, ouviu outra vez os cães. Aprontou a espingarda comprida e pesada – como Sam ensinara – ainda antes que o índio desse ordem. Mas desta vez não havia veado, nem coro de cães a correr sobre um rastro fácil. Era um latir fatigante, uma oitava acima, com qualquer coisa de indeciso e até de abjeto; que parecia não se mover e levava tempo enorme para ficar longe do alcance do ouvido. E que então deixava no ar um eco agudo, levemente histérico, quase lamentoso, humano. Aquilo não podia ser a perseguição a qualquer animal fugitivo, cor de fumo, herbívoro. E o Sam, que lhe ensinara a armar a espingarda antes de mais nada, a tomar posição de onde pudesse ver tudo e depois não se mexer nem bulir na espingarda, viera para o lado dele. O rapaz ouvia o índio respirando sobre o seu ombro e via a curva arqueada das narinas do velho.
Ah – disse Sam – nem se dá ao trabalho de correr. Vem andando.
É o velho Ben – a voz do rapaz estava excitada. – Mas tão aqui em cima?
Faz isso todos os anos – disse o índio. – Uma vez. Provavelmente para ver quem veio este ano, se é gente que sabe atirar ou não. Para ver se já temos o cão capaz de acossá-lo e meter-lhe os dentes. Vai levar os cães todos ao rio e depois mandá-los para trás.
O menino ficou ouvindo. Sam disse vamos voltar e depois disse, mais para si próprio:
Vai ver o aspecto deles, quando chegarem de volta ao acampamento.
Quando chegaram ao acampamento os cães já estavam lá, dez deles, encolhidos atrás da cozinha. O rapaz e o índio acocoraram-se para espreitar na escuridão onde estavam amontoados, silenciosos, de olhos reluzentes que acendiam e apagavam. E nem um único som. Só aquele pressentimento de qualquer coisa mais forte do que um cão e não apenas um animal ou fera. Nada houvera diante daquele latir abjeto e quase doloroso senão a solidão selvagem.
E quando o undécimo cão chegou, ao meio-dia, todos olharam, até o velho tio Ash – que se dizia cozinheiro antes de mais nada. E Sam tratou-o com terebentina e massa de untar os eixos, passando mãos cheias na orelha em tiras e na espádua. E para o rapaz, o autor de tudo aquilo continuou a ser a solidão selvagem que castigara com uma pancada leve a temeridade do cão. Aquilo não parecia obra de uma criatura viva, mortal.
Tal e qual um homem – disse Sam. – Tal e qual. Foi demorando, demorando o mais possível, adiando a ocasião de ter coragem, sabendo perfeitamente que mais tarde ou mais cedo teria de ganhar coragem para poder continuar merecendo o nome de cão; e sabendo antecipadamente o que lhe aconteceria, quando a coragem chegasse.
Nessa tarde, montado na mula caolha do carroção, que não se importava com o cheiro de sangue (nem, como lhe contaram, com o dos ursos), e com Sam ao lado montado na outra, cavalgaram durante mais de três horas naquele dia de inverno. Não seguiram nenhuma senda, nenhum atalho que ele percebesse. Em pouco tempo estavam num lugar desconhecido para eles. Então, compreendeu porque é que Sam lhe dera a mula menos espantadiça. A outra parou, tentou voltar a fugir. Mesmo quando o índio desceu e agarrou as rédeas, bem curto, ela continuou bufando, puxando, querendo voltar. Sam incitava a mula a correr, gritando com ela, porque não queria arriscar amarrá-la. Finalmente, ela avançou, bufando sempre. O rapaz não teve dificuldade com a sua, mas também desceu e segurou as rédeas, curto.
De pé, ao lado de Sam, no escuro da tarde que morria, olhos no tronco apodrecido e virado, estripado e riscado de marcas de garras, o rapaz viu na terra molhada, ao lado, a pegada da enorme pata de dois dedos, torta. Agora sabia que cheiro sentira quando fora olhar os cães encolhidos debaixo da cozinha. Pela primeira vez compreendeu que o urso que via antes, que aparecia nos seus sonhos desde que se conhecia como gente e que devia ter existido antes nos sonhos do pai, do Major e até do velho General Compson, que esse urso era um animal mortal. E que – pensou – se eles tinham partido todos os anos no mês de novembro para a caçada sem esperanças de voltar com o troféu, não era porque este não pudesse ser abatido, mas porque até aqui eles não tiveram ainda verdadeiras esperanças de caçá-lo.
Amanhã – disse ele.
Tentaremos amanhã – emendou Sam. – Mas ainda não temos cão.
Temos onze. Contamos esta manhã.
Só é preciso um. Mas não está aqui. Talvez não esteja em parte alguma. A única maneira é ele dar de cara, por acidente, com alguém que esteja armado.
Não seria comigo. Seria o Walter, ou o Major, ou…
Podia ser – disse o índio. – Amanhã tenha muito cuidado. Porque ele é matreiro. É por isso que ainda não morreu. Se estiver cercado e tiver de escolher alguém a quem atacar, escolherá você.
Por quê? – perguntou o rapaz.
Como é que ele vai saber… Você quer dizer que ele já me conhece, sabe que é a primeira vez que venho, que ainda não tive tempo de… – parou novamente e olhou para Sam bem nos olhos. O rosto do velho nada revelava, a não ser quando sorria. Depois disse humildemente, sem espanto algum: – Foi a mim que ele veio observar. E não foi preciso vir aqui mais de uma vez, não é?
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