domingo, 24 de julho de 2016

O adeus da sombra

Naquela manhã, desmadruguei-me. Minha vizinha quase rachava na minha porta. Abri, ela nem licença: já estava dentro, chorando-me o sofá.
É minha filha, quase não respira.
A asma da miúda mais velha lhe roubava o sossego. Noites inteiras a senhora maltratava o sono: administrando essências, queimando incensos, rezando bênçãos. Mas o mal não esvaía. A miúda, peito na boca, arfava na janela escancarada. Ficara assim desde súbito desgosto de amor, fraturado seu coração. Seu apaixonado, esse que havia, desaparecera engolido em nunca, esfumado em nada. Para onde, quando, como? Nada, ninguém sabia.
É o tempo de hoje, o senhor sabe.
A vizinha dava razões de sua lúcida ignorância. Nos correntes dias, a guerra tem tantas nações. Quem sabe o jovem tombara nesses desfundos que a guerra abre na terra. O certo é que, desdentão, a filha ficara assim, enfebrecida, arfegante. Pela boca lhe saíra a alma, por ela nenhum sopro entrava. Quanto mais respirava menos inspirava. Não era de ar: a miúda tinha falta de toda a atmosfera.
Nem sei o que fazer-me-lhe.
E eu que podia? Poesia não sara quem a vida não consola. E a aflição da vizinha tinha fundamento: outro ataque e a menina não sobreviveria. Lhe dissera o médico. Mas eu que ia de viagem naquela tarde mesma. Lhe apontei tenda, saco-cama, apetrechos. De tudo ela estava a par:
Sei que vai para o mato. Por isso eu vim.
Queria exatamente isso: que de lá trouxesse uma indicada planta, coisa miraculosa, capaz de descrucificar Jesus.
Esta aqui, veja, tem que ser conforme, igual e exata, nem um pé nem rapé.
Lhe garanti serviço, eu viria carregado do milagre. Ela se despediu com tantos olhos que me doeu essa injustiça: haver, nesta vida, quem tanto precise dos alheios favores.
Essa tarde, esperei o meu guia, esse que nos próximos dias me haveria de conduzir por agnósticas paisagens. Em sua carta de apresentação se lia: Júlio Carlos Alberto, ex-presidiário. O bilhete vinha do diretor da prisão, em pedido de amigo. Eu que desse emprego ao recém-liberto malfeitor. Quem sabe, no afazer, o bandalheiro passasse a usar mais bondade?
O cadastrado se anunciou, no enrolar da sua dicção, em fala da malandragem:
Sou Julinho Casa’beto.
Me ajudou a embrulhar os instrumentos da minha viagem. Enquanto procedia o homem se descrevia, palavroso. Falava de tudo para não dizer nada. Desejava conversa, vingança dos silêncios da cela. Quem tudo perde nem sabe o que quer. Nesta vida quem tem menos é quem mais perde.
É este Julinho quem, agora, me está guiando pelos matos bravios, cultivados só de natureza. Que ele se lembra dos atalhos, isso garante o seu passo seguro.
O tempo já está quase para fechar.
Sim, daqui a pouco já baixou a noite. Teremos dificuldade em encontrar o carreirinho que nos vai dar a casa da curandeira Nãozinha de Jesus. Essa mulher eu tinha por intenção. Ela encerrava uma ciência: as plantas curadoiras. Com ela eu recebia aprendizagem. Nãozinha dava volta às sombras e arrancava raízes, folhitas, ramuscos. Com essas materiazinhas ela vencia a morte. Mas a curandeira se queixa: esses vegetais começam a rarear. Hoje, existem só de raspão. E agora, num oco do mato, vou aguardando o desmaio do corpo enquanto olho as estrelas, aos enxames. A pouca distância Julinho me acotovelou o sossego:
O doutor me desculpe: mas que anda fazer, abichando-se por estas selvas?
É meu trabalho, Júlio.
Mas o senhor sai do jardim para entrar no capim? É que cada um no seu buraco. Me diga, peço a desculpa: jiboia usa chinelos?
Me enrolo em manta, desenrolo a língua. Vencido pelo cansaço, vou desfiando conversa: minha ocupação, as medicinais plantas. Esta viagem será, porém, a última. Meu este trabalho já não poderá continuar. Os dinheiros foram retirados, a coisa foi tida sem importância. Prioridades são outras, me disseram. Que pensa você descobrir lá, na analfabeta mata: a cura da sida? Nem respondi. Que argumento usar? Existe, afinal, outra incurável doença: a síndroma da humanodeficiência adquirida. Proliferam as ciências desumanas e os cientistas ocultos. Que posso eu contrafazer?
Me desculpa mas eu lhe ouço mas não lhe sigo. É só gosto de ouvir, passei tanto tempo sem voz de gente.
Lhe pedi que ele falasse de si, razões por que tinha sido lançado nas grades. Que crime, afinal, lhe ocorrera?
Matei um homem.
E porquê?
Para roubar o moya dele. Foi uma mulher que me pediu.
Roubar o moya?
Sim, não conhece o moya? É o respirar da vida, a aragem da pessoa.
Eu sabia, mas noutra aplicação. Aquele moço não era, afinal, o comum assassino. Ele matara não um ser mas a sua sombra, esse barco que nos faz navegar por pessoas e tempos.
Foi pedido de mulher. Ela estava quase para morrer.
Você gostava dessa mulher?
Foi minha muito única paixão.
Em lugar de me apouquinhar, a conversa de Julinho me deu amolecimento. Adormecemos os dois, embrulhados em fumo da fogueira, sob o teto estrelinhoso.
Dia seguinte, destinamo-nos logo cedo. Chegamos pouco depois ao lugar da curandeira. Ficamos sentados na entrada do muti, conforme os pedidos da licença. Em boa casa africana o dia transcorre fora da casa, no pátio. Por ali rondam crianças, ciscam galinhas. Nãozinha demora a chegar. Por fim, dá aparecimento. Nos saudamos nas delongas do habitual, mão na mão, tocando-nos no corpo, trocando-nos na alma. Foi quando Nãozinha de Jesus notou Julinho.
Veio com esse?
Estremeceu, baixando o rosto. O cabo da sua catana rodou, em assobio, pelos ares. A lâmina se espetou no tronco da árvore sagrada. A curandeira cuspiu na seiva que escorreu do golpe. Voltou a encarar o moço, agora em desafio de vencedora. Julinho se afastou, cabisbaixo.
E sentamos. Eu devia duas palavras: explicação e pedido. Começo pelo primeiro assunto: aquela, a última visita. Minhas razões deixam Nãozinha em tristeza. A curandeira se ofende. Lhe prometera combatermos juntos, ambos querendo salvar os seus vitais materiais, guardar em mundo suas antigas sabedorias.
Agora já não dá tempo. É que nos levam tudo, esses que vem da cidade cortam tudo, nem raízes nos deixam...
Ainda tento a luz em fundo de túnel. Digo: se andarmos juntos, nas devidas pressas. O desânimo de Nãozinha me interrompe:
Eu já não tenho após, meu filho. Para que as pressas?
Avanço no segundo assunto. Lhe mostro o pedaço da plantinha que eu devia levar no regresso. Explico a urgência do pedido, a salvação da vizinhinha. A curandeira olha as folhas e responde um desaponto:
Essas folhas, já há muito tempo que foram, voaram, borboletaram-se por aí.
Mas nem um pezinho, ramilho a sobrar das moitas? Ela estica os lábios, em dúvida. Só se for lá num último canto.
Venha comigo, me ajude a procurar.
Fomos, floresta adentro. Cacimbo e folhagens dificultavam o sol, me fazia bem aquela frescura. Me distraíam mil encantamentos. Mas as belezas se subtraem: a gente vê a borboleta e esquece a flor. Nãozinha para numa clareira, ergue a mão a dizer que chegámos. Os dois revolvemos o chão. Nada, nem réstia da plantinha. Até ali os vendedeiros haviam chegado. Até dali eles haviam arrancado, levado em carradas para a cidade.
No dia seguinte, regresso. Se fora diminuído, acabrunhado vinha.
Como explicar à vizinha que não trazia o remédio? É assunto explicável para uma mãe? Entrei na porta ao lado com a cabeça no peito. A senhora me recebeu e, me vendo, dispensou explicação. Me pegou na mão para que olhasse os finais sofrimentos da moça. No quarto dela a gente se tonteia entre incensos e vapores. A moça estava em leito e se ouvia o ar dentro dela, em crepitar de fogueira. A moribunda já não tinha olhar: fitava o que não há, paisagens de nenhures. Aqueles olhos dela me instigavam, magnéticos. Estava prisioneiro daquele vazio deles.
De súbito, daquele mesmo mortiço semblante se abriu um esgar, em fulminância. Fixava alguém que entrava no aposento. Quem olhava ela, quem reconhecera em tais espantos? Olhei para trás a tempo de ver o rebrilhar de faca num veloz punho. No imediato segundo, a lâmina se afundou no meu peito. Se cravou fundo, em golpe de raiz. A última coisa que eu vi foi a asmática moça se erguendo para abraçar meu guia, Julinho Casa’beto. E se debruçaram, ambos, para recolher a minha sombra.
Mia Couto, Estórias abensonhadas

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