Naquela
manhã, desmadruguei-me. Minha vizinha quase rachava na minha porta.
Abri, ela nem licença: já estava dentro, chorando-me o sofá.
— É
minha filha, quase não respira.
A
asma da miúda mais velha lhe roubava o sossego. Noites inteiras a
senhora maltratava o sono: administrando essências, queimando
incensos, rezando bênçãos. Mas o mal não esvaía. A miúda, peito
na boca, arfava na janela escancarada. Ficara assim desde súbito
desgosto de amor, fraturado seu coração. Seu apaixonado, esse que
havia, desaparecera engolido em nunca, esfumado em nada. Para onde,
quando, como? Nada, ninguém sabia.
— É
o tempo de hoje, o senhor sabe.
A
vizinha dava razões de sua lúcida ignorância. Nos correntes dias,
a guerra tem tantas nações. Quem sabe o jovem tombara nesses
desfundos que a guerra abre na terra. O certo é que, desdentão, a
filha ficara assim, enfebrecida, arfegante. Pela boca lhe saíra a
alma, por ela nenhum sopro entrava. Quanto mais respirava menos
inspirava. Não era de ar: a miúda tinha falta de toda a atmosfera.
— Nem
sei o que fazer-me-lhe.
E
eu que podia? Poesia não sara quem a vida não consola. E a aflição
da vizinha tinha fundamento: outro ataque e a menina não
sobreviveria. Lhe dissera o médico. Mas eu que ia de viagem naquela
tarde mesma. Lhe apontei tenda, saco-cama, apetrechos. De tudo ela
estava a par:
— Sei
que vai para o mato. Por isso eu vim.
Queria
exatamente isso: que de lá trouxesse uma indicada planta, coisa
miraculosa, capaz de descrucificar Jesus.
— Esta
aqui, veja, tem que ser conforme, igual e exata, nem um pé nem rapé.
Lhe
garanti serviço, eu viria carregado do milagre. Ela se despediu com
tantos olhos que me doeu essa injustiça: haver, nesta vida, quem
tanto precise dos alheios favores.
Essa
tarde, esperei o meu guia, esse que nos próximos dias me haveria de
conduzir por agnósticas paisagens. Em sua carta de apresentação se
lia: Júlio Carlos Alberto, ex-presidiário. O bilhete vinha do
diretor da prisão, em pedido de amigo. Eu que desse emprego ao
recém-liberto malfeitor. Quem sabe, no afazer, o bandalheiro
passasse a usar mais bondade?
O
cadastrado se anunciou, no enrolar da sua dicção, em fala da
malandragem:
— Sou
Julinho Casa’beto.
Me
ajudou a embrulhar os instrumentos da minha viagem. Enquanto procedia
o homem se descrevia, palavroso. Falava de tudo para não dizer nada.
Desejava conversa, vingança dos silêncios da cela. Quem tudo perde
nem sabe o que quer. Nesta vida quem tem menos é quem mais perde.
É
este Julinho quem, agora, me está guiando pelos matos bravios,
cultivados só de natureza. Que ele se lembra dos atalhos, isso
garante o seu passo seguro.
— O
tempo já está quase para fechar.
Sim,
daqui a pouco já baixou a noite. Teremos dificuldade em encontrar o
carreirinho que nos vai dar a casa da curandeira Nãozinha de Jesus.
Essa mulher eu tinha por intenção. Ela encerrava uma ciência: as
plantas curadoiras. Com ela eu recebia aprendizagem. Nãozinha dava
volta às sombras e arrancava raízes, folhitas, ramuscos. Com essas
materiazinhas ela vencia a morte. Mas a curandeira se queixa: esses
vegetais começam a rarear. Hoje, existem só de raspão. E agora,
num oco do mato, vou aguardando o desmaio do corpo enquanto olho as
estrelas, aos enxames. A pouca distância Julinho me acotovelou o
sossego:
— O
doutor me desculpe: mas que anda fazer, abichando-se por estas
selvas?
— É
meu trabalho, Júlio.
— Mas
o senhor sai do jardim para entrar no capim? É que cada um no seu
buraco. Me diga, peço a desculpa: jiboia usa chinelos?
Me
enrolo em manta, desenrolo a língua. Vencido pelo cansaço, vou
desfiando conversa: minha ocupação, as medicinais plantas. Esta
viagem será, porém, a última. Meu este trabalho já não poderá
continuar. Os dinheiros foram retirados, a coisa foi tida sem
importância. Prioridades são outras, me disseram. Que pensa você
descobrir lá, na analfabeta mata: a cura da sida? Nem respondi. Que
argumento usar? Existe, afinal, outra incurável doença: a síndroma
da humanodeficiência adquirida. Proliferam as ciências desumanas e
os cientistas ocultos. Que posso eu contrafazer?
— Me
desculpa mas eu lhe ouço mas não lhe sigo. É só gosto de ouvir,
passei tanto tempo sem voz de gente.
Lhe
pedi que ele falasse de si, razões por que tinha sido lançado nas
grades. Que crime, afinal, lhe ocorrera?
— Matei
um homem.
— E
porquê?
— Para
roubar o moya dele. Foi uma mulher que me pediu.
—
Roubar o moya?
— Sim,
não conhece o moya? É o respirar da vida, a aragem da pessoa.
Eu
sabia, mas noutra aplicação. Aquele moço não era, afinal, o comum
assassino. Ele matara não um ser mas a sua sombra, esse barco que
nos faz navegar por pessoas e tempos.
— Foi
pedido de mulher. Ela estava quase para morrer.
— Você
gostava dessa mulher?
— Foi
minha muito única paixão.
Em
lugar de me apouquinhar, a conversa de Julinho me deu amolecimento.
Adormecemos os dois, embrulhados em fumo da fogueira, sob o teto
estrelinhoso.
Dia
seguinte, destinamo-nos logo cedo. Chegamos pouco depois ao lugar da
curandeira. Ficamos sentados na entrada do muti, conforme os pedidos
da licença. Em boa casa africana o dia transcorre fora da casa, no
pátio. Por ali rondam crianças, ciscam galinhas. Nãozinha demora a
chegar. Por fim, dá aparecimento. Nos saudamos nas delongas do
habitual, mão na mão, tocando-nos no corpo, trocando-nos na alma.
Foi quando Nãozinha de Jesus notou Julinho.
— Veio
com esse?
Estremeceu,
baixando o rosto. O cabo da sua catana rodou, em assobio, pelos ares.
A lâmina se espetou no tronco da árvore sagrada. A curandeira
cuspiu na seiva que escorreu do golpe. Voltou a encarar o moço,
agora em desafio de vencedora. Julinho se afastou, cabisbaixo.
E
sentamos. Eu devia duas palavras: explicação e pedido. Começo pelo
primeiro assunto: aquela, a última visita. Minhas razões deixam
Nãozinha em tristeza. A curandeira se ofende. Lhe prometera
combatermos juntos, ambos querendo salvar os seus vitais materiais,
guardar em mundo suas antigas sabedorias.
— Agora
já não dá tempo. É que nos levam tudo, esses que vem da cidade
cortam tudo, nem raízes nos deixam...
Ainda
tento a luz em fundo de túnel. Digo: se andarmos juntos, nas devidas
pressas. O desânimo de Nãozinha me interrompe:
— Eu
já não tenho após, meu filho. Para que as pressas?
Avanço
no segundo assunto. Lhe mostro o pedaço da plantinha que eu devia
levar no regresso. Explico a urgência do pedido, a salvação da
vizinhinha. A curandeira olha as folhas e responde um desaponto:
— Essas
folhas, já há muito tempo que foram, voaram, borboletaram-se por
aí.
Mas
nem um pezinho, ramilho a sobrar das moitas? Ela estica os lábios,
em dúvida. Só se for lá num último canto.
— Venha
comigo, me ajude a procurar.
Fomos,
floresta adentro. Cacimbo e folhagens dificultavam o sol, me fazia
bem aquela frescura. Me distraíam mil encantamentos. Mas as belezas
se subtraem: a gente vê a borboleta e esquece a flor. Nãozinha para
numa clareira, ergue a mão a dizer que chegámos. Os dois revolvemos
o chão. Nada, nem réstia da plantinha. Até ali os vendedeiros
haviam chegado. Até dali eles haviam arrancado, levado em carradas
para a cidade.
No
dia seguinte, regresso. Se fora diminuído, acabrunhado vinha.
Como
explicar à vizinha que não trazia o remédio? É assunto explicável
para uma mãe? Entrei na porta ao lado com a cabeça no peito. A
senhora me recebeu e, me vendo, dispensou explicação. Me pegou na
mão para que olhasse os finais sofrimentos da moça. No quarto dela
a gente se tonteia entre incensos e vapores. A moça estava em leito
e se ouvia o ar dentro dela, em crepitar de fogueira. A moribunda já
não tinha olhar: fitava o que não há, paisagens de nenhures.
Aqueles olhos dela me instigavam, magnéticos. Estava prisioneiro
daquele vazio deles.
De
súbito, daquele mesmo mortiço semblante se abriu um esgar, em
fulminância. Fixava alguém que entrava no aposento. Quem olhava
ela, quem reconhecera em tais espantos? Olhei para trás a tempo de
ver o rebrilhar de faca num veloz punho. No imediato segundo, a
lâmina se afundou no meu peito. Se cravou fundo, em golpe de raiz. A
última coisa que eu vi foi a asmática moça se erguendo para
abraçar meu guia, Julinho Casa’beto. E se debruçaram, ambos, para
recolher a minha sombra.
Mia
Couto, Estórias abensonhadas
Nenhum comentário:
Postar um comentário