Na
Festa Literária de Paraty de 2007, convidado para uma palestra, o
escritor sul-africano J.M. Coetzee preferiu ler um trecho de Diário
de um ano ruim , livro que chega agora ao mercado brasileiro
(Companhia das Letras, tradução de José Rubens Siqueira). Não era
uma rabugice, como alguns entenderam. Coetzee não crê que a
literatura lhe confira autoridade para falar. Todo o poder que
atribuímos aos escritores, pensa, se esgota nos livros.
As
vanguardas do século XX puseram em dúvida a autoridade dos
escritores. A crítica formalista confinou os grandes mestres do
século XIX, como o realista Leon Tolstói – um escritor dono de si
e que foi visto como um sábio –, na jaula suspeita da retórica.
Apesar da grandeza de Tolstó i, a literatura, hoje sabemos, não
confere poder. Ao contrário: ela aniquila as ilusões de poder e nos
comprime no pouco que somos.
Arranco
essas reflexões do livro de J.M. Coetzee, um romance que reforça no
leitor a desconfiança. Ele se desenrola em três faixas superpostas.
No alto das páginas, em corpo maior, lemos “Opiniões fortes”,
ensaio político que o narrador, C., escreve por encomenda. Na faixa
intermediária, em corpo menor, ele relata seu encontro com Anya, uma
jovem que contrata como datilógrafa. Mais abaixo, em outra banda
paralela, é Anya quem fala de seu patrão. O livro não se limita a
carregar outro livro. A firmeza que atribuímos aos narradores se
racha na voz duplicada da secretária. Ao leitor, resta avançar
nessa via tripla, em estado de desequilíbrio, como um homem que, com
três pernas, tivesse um único sapato para calçar.
Exercício
de modéstia? Ou, ao contrário, de verdadeiro Realismo? Depois do
século XX, aos escritores restou uma ideia do filósofo dinamarquês
Soren Kierkegaard: “Aprenda a falar sem autoridade”. Mas, admite
C., o narrador de Coetzee cuja identidade – como a do K., de Franz
Kafka – se mistura com a dele próprio: “Ao copiar aqui as
palavras de Kierkegaard, transformo Kierkegaard em autoridade”. Não
há saída: estamos sempre em busca de suportes – ainda que sejam
de areia e se esfarelem ao primeiro toque. Mesmo para lidar com o
descrédito, um escritor precisa construir (inventar) um domínio
pessoal. A alcunha de El Señor, que Anya lhe destina, é irônica,
pois C. não é senhor de si. Só consegue escrever quando se coloca
fora de si.
“As
histórias se contam sozinhas, não são contadas”, ele diz. “Nunca
tente se impor. Espere a história falar por si.” Não é uma
espera para medrosos. Para escrever um romance, sugere, o escritor
precisa ser como Atlas, o titã grego, condenado por Zeus a sustentar
o Céu. “Segurar o mundo inteiro nas costas e aguentar ali meses e
anos enquanto os casos vão se resolvendo”, resume. É mais que
paciência: é resistência. Resistir a quê? Antes de tudo, à
própria derrota. E aqui, por vias tortas, volto a Tolstói: porque é
fraco, o escritor precisa imaginar um Tolstói (um Atlas) dentro de
si. Ou não suportará avançar.
Entediada,
Anya tenta convencer o patrão a não escrever sobre política, a
escrever uma ficção. Ela se indispõe com seu estilo áspero. C.
retruca: “Estamos numa idade das trevas. Você não pode esperar
que eu escreva de um jeito leve”. Velho e sofrendo de Parkinson, o
escritor pensa que a moça pode ser um anjo, que veio conduzi-lo para
a morte. Mesmo assim, veste-se com elegância: nunca tira um paletó
de tweed de cor de mostarda. O bom gosto é inútil, mas lhe dá um
corpo em que se abrigar.
A
convivência com Anya denuncia a debilidade de sua escrita. Ela não
o leva a mudar suas opiniões sobre o mundo, mas, sim, a mudar suas
opiniões sobre suas próprias opiniões. Quando Anya lê as
transcrições em voz alta, ele vê no rosto da moça um assombro que
faz observar, de outra maneira, o que escreveu. Defronta-se com o
espanto do leitor – que, ao ler pela primeira vez um grande
romance, se lê para valer, o experimenta “como se fosse seu”. A
literatura é uma mensagem pessoal que o escritor destina a um
desconhecido. Lembro de Van Gogh, tonto e miserável, seguro de que a
única riqueza era o assombro provocado por suas telas.
Em
“Opiniões fortes”, C. expõe sua perplexidade diante dos
programas de culinária transmitidos pela TV. Ninguém se espanta ao
ver, entre frutos, vegetais e temperos, alguns “pedaços de carne
cortados poucos dias antes do corpo de alguma criatura morta de forma
intencional e com violência”. Com a mesma tranquilidade,
frequentamos açougues para admirar bistecas e filés. C., ao
contrário, não exclui do que vê o sofrimento dos animais. Ele
compartilha com os leitores verdadeiros o mesmo “olhar estranhado”
sugerido pelo crítico russo Viktor Shklovsky (1893-1984). Um olhar
que, indisposto com o banal, não abdica de ver pela primeira vez.
A
realidade é muito complexa para suportar a coerência das grandes
narrativas. Já nas primeiras páginas do romance, quando conhece
Anya, por acaso, em uma lavanderia, C. desiste de inventar “felizes
coincidências” que motivem outros encontros entre eles. “A vida
é curta demais para tramas”, reconhece. Essa constatação produz
uma dor que se aproxima da elevação. “Enquanto eu olhava para
ela, uma dor, uma dor metafísica, penetrou em mim e não fiz nada
para impedir”. Talvez o papel da literatura se pareça com o do
Estado, evocado por C. no ensaio que escreve. Ele lembra as ideias de
Thomas Hobbes, para quem o mito de fundação do Estado fala de uma
“impotência voluntária”, que precede o desejo de ordem. Fora do
Estado – fora do reino insuficiente das palavras – tudo é
confusão. Também as palavras (as ficções) ordenam nosso caos
interior. Estruturas vazias, prontas para o novo, elas nos ajudam a
ser. Não fornecem respostas, mas nos conservam em um estado de
atenção e de elevação que, enfim, chamamos de vida.
A
Literatura (uso a maiúscula por prudência, não por certeza) é uma
abstração. Um manto que costuramos para que, enfim, as palavras não
nos queimem diretamente os olhos. Um tapete protetor – cheio de
rasgões, de furos, de insuficiência – sobre o qual, ainda assim,
desenrolamos a vida.
José
Castello, in Sábados inquietos
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