(Ao
Che Amur que me contou a versão que serve de caroço a esta estória)
1926:
foi o ano da data. Aconteceu pessoalmente a estória do comerciante
Mohamed Pangi Patel, homem poderoso que despendeu vida e riqueza na
Ilha de Moçambique. Comportadamente decorriam os tempos e Mohamed
Pangi dava graças a Deus pela amabilidade do mundo e das suas
belezas. O ismaelita vivia engordado de seu próprio nome, cheio de
disposição. Mais satisfeito ele ainda se instaurou quando seu filho
único lhe veio anunciar a decisão do casamento.
— Sabe,
filho? A vida é um perfume!
E
iniciaram os imediatos preparativos do matrimônio.
Festa igual nunca mais se iria ver naquelas paragens. Vieram músicos
de Zanzibar, convidados de Mombaça, gentes do Ibo e Angoche. A festa
demorou trinta dias de tempo. Em cada um desses dias, a praça se
cobriu de mesas, recheadas de refeições. De manhã à noite, se
exibiam comidas, de todas as espécies e quantidades. A ilha inteira
vinha e se servia, às arrotadas abundâncias. Nenhum pobre sentiu,
nesses dias, o beliscão do estômago. E nenhuma família dava
afazeres à cozinha: mata-bicho, almoço e jantar decorriam na praça.
Enquanto as bocas se espraiavam pelas alegrias, o Pangi se alargava
num banco, na competência dos calores. Seu trabalho era transpirar,
enquanto se deleitava em ver o despacho das maxilas.
— Mas,
pai: não é tudo isso de mais?
O
filho se começava a preocupar com a totalidade da despesa. Mas Pangi
respondia em displiciência: Mais
vale é nenhum pássaro na mão. Mais vale é ver a passarada
desfraldando asas na paisagem. O céu, afinal, só foi inventado
depois das aves. E
sorria:
— Não
esqueça, filho: a vida é um perfume!
E
se explicava: a
gente traz esse perfume em nosso natural e congénito corpo. Esse
odor, primeiro, se irradia, forte, contagioso. Se alguém cheirasse o
mundo, nesse princípio, haveria de sentir só o nosso próprio
aroma. Mas, depois, esse cheiro se vai diluindo. E a gente, para o
sentir, tem de esforçar as narinas: uma dor de cabeça para o nariz.
E assim, no adiante, já não há só a lembrança de um arrepio, até
a pele da memória vai secando...
— Pai:
como vamos pagar tudo isso?
A
pergunta tinha o cabimento. Não tardaram a chegar os credores, as
casas foram hipotecadas. Depois, as mercadorias das lojas foram
despejadas em hasta pública. As infinitas propriedades do Pangi se
iam extinguindo. De rico ele se despromovia a quinhenteiro, de bolsos
remelosos. Tudo isso, porém, ocorria às ocultas. Ninguém senão o
expropriado Pangi sabia desses acertos. Silencioso como um punhal o
ismaelita sentava no banco, em estado de lumbração, enquanto
contemplava a infindável festa.
Cansado
de atentar na realidade, o noivo tomou decisão de sair da ilha.
Nessa noite, ele ultimatou o velho pai: ou acabava a celebração ou
ele lhe dava as costas para sempre. O velho sorriu-se, estupefarto,
mais firme que o firmamento. Apontou um qualquer nada, distinguiu
entre os praceirentos um nenhum ninguém. E disse:
—
Escuta
essa música. Me gosta tanto essa canção que até me dói ouvir.
Raiventoso,
o filho se retirou em decisão de malas, barcos e viagens sem
regresso. A noiva ainda ficou ali, sentada no igual banco do Pangi. A
moça se embebevecia, olhos postos no sogro. Ajeitou as vestes
nupciais e se achegou ao crespuscalado patriarca. Ela lhe segurou a
mão e arregaçou os grandes olhos:
— Pai:
quer dançar essa música comigo?
O
velho se ergueu, silente, e se deixou conduzir para o centro da
praça. Ali, os dois se entredançaram, em pista de mil luzinhas,
insetos de prata enlouquecendo o escuro. Enquanto rodopiava, o velho
aspirava o perfume dos
jacarandás. Ciúme ele sofria da eternidade dos aromas das árvores.
— Me
diga, minha filha: eu ainda tenho cheiro?
Ela
sorriu, sem responder. Ao invés, lhe segurou o braço e o reconduziu
à dança. Enquanto se embalavam, Mohamed Pangi foi segredando uma
desculpa. Sabia ela? Que aquela prenda não se destinava a eles, os
ingênuos noivos. Enfim, aquelas quantias tão despesadas eram para
comemorar uma outra acontecência. Naqueles dias, a ilha se despira
da pobreza, nenhuma mãe medira o choro de seus filhos, os homens
beberam não para esquecer mas para se seivarem nas veias do tempo.
— Deus
haveria de gostar de um mundo assim. Esta praça eu ofereço a Ele,
me entende?
E
se despediu da noiva, beijo na testa.
Você cheira a fruto, minha filha, aroma igual só a terra.
—
Amanhã,
manhãzinha, já terminou a festa. Diga isso a meu filho.
— Pai,
volte o senhor a casa.
Qual
casa? A praça era agora a sua casa. Ele morava na mesma praça que
ofertara aos deuses. E a mão da noiva agitou no ar o lenço da
despedida.
Na
manhã seguinte, a praça amanheceu sem festa. As mesas se tinham
recolhido, a banda se havia retirado, sapatos e poeiras se renderam
ao sossego. Tudo ali era desarrumada ausência, lembrança de risos e
melodias. Somente, num banco do jardim, Mohamed Pangi Patel
estagnava, em inesparada moldura, um estranho sorriso. Deus sorria
por sua boca? Se lhe cancelara a vida, em último penhor das pesadas
dívidas?
A
noiva foi a primeira a chegar-lhe. Se ajoelhou junto do corpo e
retirou de seus cabelos as muitas, distraídas, pétalas caídas das
altas árvores. Mas depois, quando já arrastavam o corpo, ela voltou
a juntar uma mão-cheia das perfumosas florinhas e as devolveu ao
sogro. Mohamed Pangi Patel retirava-se da praça dos jacarandás
polvilhado de eternidade.
Mia
Couto, in Estórias
abensonhadas
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