domingo, 17 de julho de 2016

A praça dos deuses

(Ao Che Amur que me contou a versão que serve de caroço a esta estória)

1926: foi o ano da data. Aconteceu pessoalmente a estória do comerciante Mohamed Pangi Patel, homem poderoso que despendeu vida e riqueza na Ilha de Moçambique. Comportadamente decorriam os tempos e Mohamed Pangi dava graças a Deus pela amabilidade do mundo e das suas belezas. O ismaelita vivia engordado de seu próprio nome, cheio de disposição. Mais satisfeito ele ainda se instaurou quando seu filho único lhe veio anunciar a decisão do casamento.
Sabe, filho? A vida é um perfume!
E iniciaram os imediatos preparativos do matrimônio. Festa igual nunca mais se iria ver naquelas paragens. Vieram músicos de Zanzibar, convidados de Mombaça, gentes do Ibo e Angoche. A festa demorou trinta dias de tempo. Em cada um desses dias, a praça se cobriu de mesas, recheadas de refeições. De manhã à noite, se exibiam comidas, de todas as espécies e quantidades. A ilha inteira vinha e se servia, às arrotadas abundâncias. Nenhum pobre sentiu, nesses dias, o beliscão do estômago. E nenhuma família dava afazeres à cozinha: mata-bicho, almoço e jantar decorriam na praça. Enquanto as bocas se espraiavam pelas alegrias, o Pangi se alargava num banco, na competência dos calores. Seu trabalho era transpirar, enquanto se deleitava em ver o despacho das maxilas.
Mas, pai: não é tudo isso de mais?
O filho se começava a preocupar com a totalidade da despesa. Mas Pangi respondia em displiciência: Mais vale é nenhum pássaro na mão. Mais vale é ver a passarada desfraldando asas na paisagem. O céu, afinal, só foi inventado depois das aves. E sorria:
Não esqueça, filho: a vida é um perfume!
E se explicava: a gente traz esse perfume em nosso natural e congénito corpo. Esse odor, primeiro, se irradia, forte, contagioso. Se alguém cheirasse o mundo, nesse princípio, haveria de sentir só o nosso próprio aroma. Mas, depois, esse cheiro se vai diluindo. E a gente, para o sentir, tem de esforçar as narinas: uma dor de cabeça para o nariz. E assim, no adiante, já não há só a lembrança de um arrepio, até a pele da memória vai secando...
Pai: como vamos pagar tudo isso?
A pergunta tinha o cabimento. Não tardaram a chegar os credores, as casas foram hipotecadas. Depois, as mercadorias das lojas foram despejadas em hasta pública. As infinitas propriedades do Pangi se iam extinguindo. De rico ele se despromovia a quinhenteiro, de bolsos remelosos. Tudo isso, porém, ocorria às ocultas. Ninguém senão o expropriado Pangi sabia desses acertos. Silencioso como um punhal o ismaelita sentava no banco, em estado de lumbração, enquanto contemplava a infindável festa.
Cansado de atentar na realidade, o noivo tomou decisão de sair da ilha. Nessa noite, ele ultimatou o velho pai: ou acabava a celebração ou ele lhe dava as costas para sempre. O velho sorriu-se, estupefarto, mais firme que o firmamento. Apontou um qualquer nada, distinguiu entre os praceirentos um nenhum ninguém. E disse:
Escuta essa música. Me gosta tanto essa canção que até me dói ouvir.
Raiventoso, o filho se retirou em decisão de malas, barcos e viagens sem regresso. A noiva ainda ficou ali, sentada no igual banco do Pangi. A moça se embebevecia, olhos postos no sogro. Ajeitou as vestes nupciais e se achegou ao crespuscalado patriarca. Ela lhe segurou a mão e arregaçou os grandes olhos:
Pai: quer dançar essa música comigo?
O velho se ergueu, silente, e se deixou conduzir para o centro da praça. Ali, os dois se entredançaram, em pista de mil luzinhas, insetos de prata enlouquecendo o escuro. Enquanto rodopiava, o velho aspirava o perfume dos jacarandás. Ciúme ele sofria da eternidade dos aromas das árvores.
Me diga, minha filha: eu ainda tenho cheiro?
Ela sorriu, sem responder. Ao invés, lhe segurou o braço e o reconduziu à dança. Enquanto se embalavam, Mohamed Pangi foi segredando uma desculpa. Sabia ela? Que aquela prenda não se destinava a eles, os ingênuos noivos. Enfim, aquelas quantias tão despesadas eram para comemorar uma outra acontecência. Naqueles dias, a ilha se despira da pobreza, nenhuma mãe medira o choro de seus filhos, os homens beberam não para esquecer mas para se seivarem nas veias do tempo.
Deus haveria de gostar de um mundo assim. Esta praça eu ofereço a Ele, me entende?
E se despediu da noiva, beijo na testa. Você cheira a fruto, minha filha, aroma igual só a terra.
Amanhã, manhãzinha, já terminou a festa. Diga isso a meu filho.
Pai, volte o senhor a casa.
Qual casa? A praça era agora a sua casa. Ele morava na mesma praça que ofertara aos deuses. E a mão da noiva agitou no ar o lenço da despedida.
Na manhã seguinte, a praça amanheceu sem festa. As mesas se tinham recolhido, a banda se havia retirado, sapatos e poeiras se renderam ao sossego. Tudo ali era desarrumada ausência, lembrança de risos e melodias. Somente, num banco do jardim, Mohamed Pangi Patel estagnava, em inesparada moldura, um estranho sorriso. Deus sorria por sua boca? Se lhe cancelara a vida, em último penhor das pesadas dívidas?
A noiva foi a primeira a chegar-lhe. Se ajoelhou junto do corpo e retirou de seus cabelos as muitas, distraídas, pétalas caídas das altas árvores. Mas depois, quando já arrastavam o corpo, ela voltou a juntar uma mão-cheia das perfumosas florinhas e as devolveu ao sogro. Mohamed Pangi Patel retirava-se da praça dos jacarandás polvilhado de eternidade.
Mia Couto, in Estórias abensonhadas

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