quinta-feira, 21 de julho de 2016

A paixão

Já não tinham lembranças para dividir, nem piadas para contar nem vontade de cavar túneis ou ficarem invisíveis ou atravessar os muros A cadeia tinha se transformado em costume e a liberdade consistia, agora, em perambular pelo pátio de baixo durante o tempo permitido, os homens sós ou em pequenos grupos, dando pulinhos contra o frio, sem falar nada, torcendo de vez em quando o pescoço para perseguir as nuvens que, lá em cima, lá longe, também caminhavam. Mas as nuvens caminhavam para onde o vento de inverno as levava.
Uma manhã, o garoto Oscar veio com a notícia. Ele tinha sido agarrado: “É um dos chefes. Alguém o entregou”. Do quarto andar brotou, de repente, o estrépido de uma música da moda, obrigaaado, senhoor, pelas estreelaas, o rádio chiava, obrigaaado, senhor, por mais uuum diia, e todos os presos do pátio de baixo olharam para a janela dessa cela do quarto andar, e uuumma veez maaaaais, obrigaado senhoor, e em seguida se olharam uns aos outros, longamente, tuuudo, tuudo vai melhoor, bem melhoor com cooca-coooola, o interrogatório havia começado, atlaaantic serviço nota deeez, eles sabiam, sóó esso dáá ao seu carro o mááximo, e pararam as orelhas para distinguir o uivo de uma voz humana através da salada de avisos e música, mas não, era só um cantor qualquer que gritava: não queeero nuuuunca maaais amaaar.
Estavam ali porque não havia lugar. O garoto Oscar estava esperando, como todos os outros, a transferência de uma cadeia a outra. Faltavam ainda onze anos para que saísse, e contava os dias. O garoto Oscar estava preso em lugar de outro, ou pelo menos tinha achado isso no começo, e tinha aprendido, com o tempo, a não protestar. O garoto comentou, erguendo os ombros: “Este é um dos líricos. Não roubam para eles”. Disse que o conhecia dos velhos tempos, de antes da fuga, e que era um homem que falava pouco.
Imaginava-o, agora, de costas contra o chão gelado, com uma venda sobre os olhos ou um capuz embolorado amarrado ao pescoço, nu, os braços em cruz e as pernas atadas às estacas, surdo à música que os atordoava e surdo às vozes dos homens que apagavam cigarros contra a sua pele.
Mas desta vez, vai cantar, pensou o garoto Oscar. “Não vai aguentar. Todos cantaram. Já não é como antes.” O garoto Oscar, abraçado a si mesmo, massageava as costelas para se esquentar e olhava, para não pensar, os malabarismos que Sapato Usado fazia com quatro moedas no ar.
Ao entardecer, no corredor que levava ao banheiro, o garoto Oscar cruzou com o Zorro. O Zorro, antes, tinha vivido bem, injetando chá em garrafas de puro uísque escocês. O Zorro comentou que este era um dos últimos importantes que tinham ficado de fora, e que o movimento estava desfeito: “Nem eles se acreditam mais”. O Zorro sabia; ele lia os jornais. Havia coisas que os jornais não publicavam, mas o Zorro tinha experiência: os golpes na nuca como lâminas de navalha e nos rins como balas de canhão e nos ouvidos como um estalo de granadas, as perguntas e os insultos, as investidas contra o fígado: vai cantar ou vai morrer? Sabia que já estavam havia nove horas nesse assunto. “Vinham com a maquininha de choque e era como se arrancassem o meu braço.”
Na manhã seguinte, no pátio, o garoto Oscar perguntou e o Zorro respondeu:
Até agora, nem o próprio nome.
Sapato Usado os escutava como quem ouve chover. Sapato Usado não falava nunca e os outros achavam que era filho de um palhaço de circo: mantinha suas moedas dançando no ar e isso era tudo que fazia, a única coisa que sabia fazer, brincar com as moedas durante todo o dia e também durante as muitas noites que passava sem dormir. Se alguém contasse para ele o que sua memória se negava a recordar, teria falado do pesadelo de ser uma bola chutada por várias botas e a carne arrancada aos pedaços pelas mordidas da eletricidade no pescoço, nas axilas, no chamado ventre, e então, esse alguém teria dito a ele, você procurou uma gilete para abrir as veias e bebia o próprio mijo e lambia o lodo do chão da cela e quando abriram a porta você olhou para eles e disse: “Estou morto”, mas tudo recomeçou, Sapato Usado, novamente. Até que uma noite, esse alguém contaria, você se arrastou até o banheiro e abriu a torneira e em vez de água saíam gritos e levaram você para o hospício.
Jorge Martínez Dias ou Eusébio Sosa ou Julián Echenique (também conhecido como Pouca Roupa), que tinha estrangulado uma bicha velha com uma meia de seda, comentou em voz baixa: “Deve ter desmaiado. Tem que ter desmaiado”. Sapato Usado estava junto e sorriu: não entendia nada. E Pouca Roupa, entendia? Pouca Roupa pensava que já tinham sido vinte quatro horas seguidas de tratamento no quarto andar e pensava que aquele cara já deveria ter passado os limites, porque tem de haver um limite, e este cara não pode continuar calado além desse limite, porque, além do limite, pensava Pouca Roupa, o cara diz o que querem que ele diga, fala de pessoas que nem conhece, troca seu pai ou seu irmão por uma trégua.
Durante a segunda noite, depois que desligaram o rádio, os presos de baixo esperaram, em vão, uma voz nova que sacudisse as paredes, entre os gritos roucos de sempre que noite a noite diziam: me bateram, estou sem roupa, morro de frio. filhos da puta, me arrebentaram.
Se acabou”, pensavam. Houve quem imaginou a comunicação oficial, a tentativa de fuga, ou o suicídio por um pulo de mais de quatro metros de altura, mas muito antes da madrugada foram despertados novamente pelo rádio a todo volume, música de dança, eeera aqueele cheeiro de saudaaaaaade, ressoando pelo corredor, quee me traaz você a cada instaaaante, atravessando as paredes, caboooclo, escorrendo pelos pátios, êêêêta cafezinho boooooooom, e metendo-se nas celas e nos calabouços, embora não fosse exatamente o barulho do rádio o que tinha aberto os olhos de todos e os manteriam abertos pelo resto da noite.
E? – se perguntaram, na terceira manhã.
Dizem que continua mudo.
Dizem que tirou o capuz e cuspiu na cara deles.
Dizem que deu risada.
Este homem está louco, pensou o negro Viana. O negro Viana tivera o braço forte e tivera um inimigo: acabara com ele, com uma única punhalada deixara-o pregado na carroceria de madeira de um caminhão: o homem ficara pendurado no caminhão, com os olhos abertos de assombro e um cabo de punhal duro em seu peito e os pés balançando no ar. O negro Viana achava que a política acaba enlouquecendo as pessoas, por melhores que sejam essas pessoas. Tanta confusão por causa da política. O negro Viana pensava que o cara achava que ia morrer: pensava que o cara pensava nos outros, os que tinham soltado a língua, tinham apertado a ponta de um lápis no peito deles e eles venderam o melhor amigo, me venderam, me entregaram, e então, pensava o negro Viana: Vale a pena? Para quê?
Ao seu lado, olhando para os próprios sapatos, o garoto Oscar comentou:
Esse cara... não sei não.
Esquisito, não é?
Sei lá.
Estou querendo que ele morra, para que parem de encher o saco.
O rádio continuava: meeu coraçãããão, não sei porquêêêê, baaaate feliiiiz.
O Zorro estava bem informado.
Mas não disse nada? Nada?
A cara dele está o dobro do tamanho.
Todos rodeavam o Zorro e ele garantia que daquela cela do quarto andar não tinha saído nenhum preso, mas ninguém acreditava nisso. Olhavam para as grades que guardavam aquela janelinha fechada de onde vinha o barulho, o muro cinzento e muito alto escorrido de umidade, e mais acima o céu que ia mudando de cor e ia mudando as sobras de lugar.
Era um lindo garoto. Parecia bem nascido.
E se está morto, pensavam, porque continuam batendo nele?
A quarta manhã nasceu nublada. Os presos do pátio de baixo se apertavam uns contra os outros disputando o raio de sol que abria caminho, aparecia e desaparecia, através dos fiapos de nuvens do céu de chumbo.
Então, trouxeram-no. Sem roupas.
Trouxeram-no arrastado e deixaram-no contra a parede. Puseram-no de costas contra a parede e ele escorregou e ficou deitado no chão, com a cabeça contra o ombro: sem ossos, um boneco de trapo, um judas pronto para a malhação de aleluia.
Primeiro, foi o espanto. Olhavam para ele e continuavam, mudos, sem acreditar. Olhavam para ele de uma certa distância, e ninguém se mexia. Ele não era mais que um montinho de pele, todo cor de violeta por causa das manchas e do frio, sem forças nem para tremer.
Finalmente, se mexeu. Apoiando-se nas costas e nos cotovelos, tratou de se erguer e caiu. A cabeça caía de lado, pendurada, balançando como se tivessem arrebentado sua nuca.
Várias vezes quis levantar e várias vezes ficou caído, mas cada vez as costas avançavam um pouco mais da parede acima; cada vez eram mais altas as manchas de sangue que ia deixando.
Ninguém se animava a ajudá-lo porque ninguém pode sentir pena de um cara assim, e uns tinham vontade de abraçá-lo mas não sabiam como se faz para abraçar um cara assim. Havia um músculo secreto dentro daquele cara: o músculo secreto tinha despertado e se contraía e se esticava lutando a um ritmo furioso e erguendo-o contra a morte, contra a puta morte: os poros tinham-se aberto como bocas e a transpiração vinha aos borbotões e era assustador que a transpiração pudesse mais que o ar gelado de uma manhã de inverno dura como esta, e era assustador que ainda lhe restasse suco para largar.
Antes do meio-dia, ficou em pé. Ficou lá, contra a parede, com as pernas abertas e o queixo caído contra o peito.
Foi levantando, pouco a pouco, a cara. Pôde entreabrir, ao poucos, os olhos inchados, enquanto apertava os dentes num trejeito de dor. Não balançava mais. Os minutos se esticavam como elásticos.
Percorreu com os olhos a fila de presos que olhavam para ele sem pestanejar, cada um colado à sua própria sombra. Olhou para eles que o olhavam, calados e distantes, a cara torcida e a cor do sangue seco. Todos olhavam sua cara, como esperando alguma coisa. Quis falar e o coração deu um salto e atravessou-lhe a garganta. Mas finalmente pôde gritar: “Companheiros!”, com uma voz quebrada, e caiu.
Algumas noites depois, no hospital militar, uma moça aproximou-se da última cama, onde ele estava. Não havia nenhum enfermeiro na sala e os guardas estavam adormecidos na porta, com os fuzis sobre os joelhos.
A moça, inclinada, sussurrava perguntas em seu ouvido. Ele respondia com os olhos, pequenas fendas abertas entre os bolos inchados do rosto, e todas as imagens de tudo que havia ocorrido se sucediam nos olhos dele e a moça ia vendo elas passarem, como num filme. Os olhos eram tudo de vivo que sobrava nele.
Eduardo Galeano, in Vagamundo

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