Já
não tinham lembranças para dividir, nem piadas para contar nem
vontade de cavar túneis ou ficarem invisíveis ou atravessar os
muros A cadeia tinha se transformado em costume e a liberdade
consistia, agora, em perambular pelo pátio de baixo durante o tempo
permitido, os homens sós ou em pequenos grupos, dando pulinhos
contra o frio, sem falar nada, torcendo de vez em quando o pescoço
para perseguir as nuvens que, lá em cima, lá longe, também
caminhavam. Mas as nuvens caminhavam para onde o vento de inverno as
levava.
Uma
manhã, o garoto Oscar veio com a notícia. Ele tinha sido agarrado:
“É um dos chefes. Alguém o entregou”. Do quarto andar brotou,
de repente, o estrépido de uma música da moda, obrigaaado,
senhoor, pelas estreelaas,
o rádio chiava, obrigaaado,
senhor, por mais uuum diia,
e todos os presos do pátio de baixo olharam para a janela dessa cela
do quarto andar, e uuumma
veez maaaaais, obrigaado senhoor,
e em seguida se olharam uns aos outros, longamente, tuuudo,
tuudo vai melhoor, bem melhoor com cooca-coooola,
o interrogatório havia começado, atlaaantic
serviço nota deeez,
eles sabiam, sóó esso
dáá ao seu carro o mááximo,
e pararam as orelhas para distinguir o uivo de uma voz humana através
da salada de avisos e música, mas não, era só um cantor qualquer
que gritava: não queeero
nuuuunca maaais amaaar.
Estavam
ali porque não havia lugar. O garoto Oscar estava esperando, como
todos os outros, a transferência de uma cadeia a outra. Faltavam
ainda onze anos para que saísse, e contava os dias. O garoto Oscar
estava preso em lugar de outro, ou pelo menos tinha achado isso no
começo, e tinha aprendido, com o tempo, a não protestar. O garoto
comentou, erguendo os ombros: “Este é um dos líricos. Não roubam
para eles”. Disse que o conhecia dos velhos tempos, de antes da
fuga, e que era um homem que falava pouco.
Imaginava-o,
agora, de costas contra o chão gelado, com uma venda sobre os olhos
ou um capuz embolorado amarrado ao pescoço, nu, os braços em cruz e
as pernas atadas às estacas, surdo à música que os atordoava e
surdo às vozes dos homens que apagavam cigarros contra a sua pele.
Mas
desta vez, vai cantar, pensou o garoto Oscar. “Não vai aguentar.
Todos cantaram. Já não é como antes.” O garoto Oscar, abraçado
a si mesmo, massageava as costelas para se esquentar e olhava, para
não pensar, os malabarismos que Sapato Usado fazia com quatro moedas
no ar.
Ao
entardecer, no corredor que levava ao banheiro, o garoto Oscar cruzou
com o Zorro. O Zorro, antes, tinha vivido bem, injetando chá em
garrafas de puro uísque escocês. O Zorro comentou que este era um
dos últimos importantes que tinham ficado de fora, e que o movimento
estava desfeito: “Nem eles se acreditam mais”. O Zorro sabia; ele
lia os jornais. Havia coisas que os jornais não publicavam, mas o
Zorro tinha experiência: os golpes na nuca como lâminas de navalha
e nos rins como balas de canhão e nos ouvidos como um estalo de
granadas, as perguntas e os insultos, as investidas contra o fígado:
vai cantar ou vai morrer? Sabia que já estavam havia nove horas
nesse assunto. “Vinham com a maquininha de choque e era como se
arrancassem o meu braço.”
Na
manhã seguinte, no pátio, o garoto Oscar perguntou e o Zorro
respondeu:
– Até
agora, nem o próprio nome.
Sapato
Usado os escutava como quem ouve chover. Sapato Usado não falava
nunca e os outros achavam que era filho de um palhaço de circo:
mantinha suas moedas dançando no ar e isso era tudo que fazia, a
única coisa que sabia fazer, brincar com as moedas durante todo o
dia e também durante as muitas noites que passava sem dormir. Se
alguém contasse para ele o que sua memória se negava a recordar,
teria falado do pesadelo de ser uma bola chutada por várias botas e
a carne arrancada aos pedaços pelas mordidas da eletricidade no
pescoço, nas axilas, no chamado ventre, e então, esse alguém teria
dito a ele, você procurou uma gilete
para abrir as veias e bebia o próprio mijo e lambia o lodo do chão
da cela e quando abriram a porta você olhou para eles e disse:
“Estou morto”, mas tudo recomeçou, Sapato Usado, novamente. Até
que uma noite, esse alguém contaria, você se arrastou até o
banheiro e abriu a torneira e em vez de água saíam gritos e levaram
você para o hospício.
Jorge
Martínez Dias ou Eusébio Sosa ou Julián Echenique (também
conhecido como Pouca Roupa), que tinha estrangulado uma bicha velha
com uma meia de seda, comentou em voz baixa: “Deve ter desmaiado.
Tem que ter desmaiado”. Sapato Usado estava junto e sorriu: não
entendia nada. E Pouca Roupa, entendia? Pouca Roupa pensava que já
tinham sido vinte quatro horas seguidas de tratamento no quarto andar
e pensava que aquele cara já deveria ter passado os limites, porque
tem de haver um limite, e este cara não pode continuar calado além
desse limite, porque, além do limite, pensava Pouca Roupa, o cara
diz o que querem que ele diga, fala de pessoas que nem conhece, troca
seu pai ou seu irmão por uma trégua.
Durante
a segunda noite, depois que desligaram o rádio, os presos de baixo
esperaram, em vão, uma voz nova que sacudisse as paredes, entre os
gritos roucos de sempre que noite a noite diziam: me bateram, estou
sem roupa, morro de frio. filhos da puta, me arrebentaram.
“Se
acabou”, pensavam. Houve quem imaginou a comunicação oficial, a
tentativa de fuga, ou o suicídio por um pulo de mais de quatro
metros de altura, mas muito antes da madrugada foram despertados
novamente pelo rádio a todo volume, música de dança, eeera
aqueele cheeiro de saudaaaaaade,
ressoando pelo corredor, quee
me traaz você a cada instaaaante,
atravessando as paredes, caboooclo,
escorrendo pelos pátios, êêêêta
cafezinho boooooooom, e
metendo-se nas celas e nos calabouços, embora não fosse exatamente
o barulho do rádio o que tinha aberto os olhos de todos e os
manteriam abertos pelo resto da noite.
– E?
– se perguntaram, na terceira manhã.
– Dizem
que continua mudo.
– Dizem
que tirou o capuz e cuspiu na cara deles.
– Dizem
que deu risada.
Este
homem está louco, pensou o negro Viana. O negro Viana tivera o braço
forte e tivera um inimigo: acabara com ele, com uma única punhalada
deixara-o pregado na carroceria de madeira de um caminhão: o homem
ficara pendurado no caminhão, com os olhos abertos de assombro e um
cabo de punhal duro em seu peito e os pés balançando no ar. O negro
Viana achava que a política acaba enlouquecendo as pessoas, por
melhores que sejam essas pessoas. Tanta confusão por causa da
política. O negro Viana pensava que o cara achava que ia morrer:
pensava que o cara pensava nos outros, os que tinham soltado a
língua, tinham apertado a ponta de um lápis no peito deles e eles
venderam o melhor amigo, me venderam, me entregaram, e então,
pensava o negro Viana: Vale a pena? Para quê?
Ao
seu lado, olhando para os próprios sapatos, o garoto Oscar comentou:
– Esse
cara... não sei não.
–
Esquisito,
não é?
– Sei
lá.
– Estou
querendo que ele morra, para que parem de encher o saco.
O
rádio continuava: meeu
coraçãããão, não sei porquêêêê, baaaate feliiiiz.
O
Zorro estava bem informado.
– Mas
não disse nada? Nada?
– A
cara dele está o dobro do tamanho.
Todos
rodeavam o Zorro e ele garantia que daquela cela do quarto andar não
tinha saído nenhum preso, mas ninguém acreditava nisso. Olhavam
para as grades que guardavam aquela janelinha fechada de onde vinha o
barulho, o muro cinzento e muito alto escorrido de umidade, e mais
acima o céu que ia mudando de cor e ia mudando as sobras de lugar.
– Era
um lindo garoto. Parecia bem nascido.
E
se está morto, pensavam, porque continuam batendo nele?
A
quarta manhã nasceu nublada. Os presos do pátio de baixo se
apertavam uns contra os outros disputando o raio de sol que abria
caminho, aparecia e desaparecia, através dos fiapos de nuvens do céu
de chumbo.
Então,
trouxeram-no. Sem roupas.
Trouxeram-no
arrastado e deixaram-no contra a parede. Puseram-no de costas contra
a parede e ele escorregou e ficou deitado no chão, com a cabeça
contra o ombro: sem ossos, um boneco de trapo, um judas pronto para a
malhação de aleluia.
Primeiro,
foi o espanto. Olhavam para ele e continuavam, mudos, sem acreditar.
Olhavam para ele de uma certa distância, e ninguém se mexia. Ele
não era mais que um montinho de pele, todo cor de violeta por causa
das manchas e do frio, sem forças nem para tremer.
Finalmente,
se mexeu. Apoiando-se nas costas e nos cotovelos, tratou de se erguer
e caiu. A cabeça caía de lado, pendurada, balançando como se
tivessem arrebentado sua nuca.
Várias
vezes quis levantar e várias vezes ficou caído, mas cada vez as
costas avançavam um pouco mais da parede acima; cada vez eram mais
altas as manchas de sangue que ia deixando.
Ninguém
se animava a ajudá-lo porque ninguém pode sentir pena de um cara
assim, e uns tinham vontade de abraçá-lo mas não sabiam como se
faz para abraçar um cara assim. Havia um músculo secreto dentro
daquele cara: o músculo secreto tinha despertado e se contraía e se
esticava lutando a um ritmo furioso e erguendo-o contra a morte,
contra a puta morte: os poros tinham-se aberto como bocas e a
transpiração vinha aos borbotões e era assustador que a
transpiração pudesse mais que o ar gelado de uma manhã de inverno
dura como esta, e era assustador que ainda lhe restasse suco para
largar.
Antes
do meio-dia, ficou em pé. Ficou lá, contra a parede, com as pernas
abertas e o queixo caído contra o peito.
Foi
levantando, pouco a pouco, a cara. Pôde entreabrir, ao poucos, os
olhos inchados, enquanto apertava os dentes num trejeito de dor. Não
balançava mais. Os minutos se esticavam como elásticos.
Percorreu
com os olhos a fila de presos que olhavam para ele sem pestanejar,
cada um colado à sua própria sombra. Olhou para eles que o olhavam,
calados e distantes, a cara torcida e a cor do sangue seco. Todos
olhavam sua cara, como esperando alguma coisa. Quis falar e o coração
deu um salto e atravessou-lhe a garganta. Mas finalmente pôde
gritar: “Companheiros!”, com uma voz quebrada, e caiu.
Algumas
noites depois, no hospital militar, uma moça aproximou-se da última
cama, onde ele estava. Não havia nenhum enfermeiro na sala e os
guardas estavam adormecidos na porta, com os fuzis sobre os joelhos.
A
moça, inclinada, sussurrava perguntas em seu ouvido. Ele respondia
com os olhos, pequenas fendas abertas entre os bolos inchados do
rosto, e todas as imagens de tudo que havia ocorrido se sucediam nos
olhos dele e a moça ia vendo elas passarem, como num filme. Os olhos
eram tudo de vivo que sobrava nele.
Eduardo
Galeano,
in Vagamundo
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