quarta-feira, 15 de junho de 2016

Os sobreviventes

Roberto quer saber quanto tempo falta para ficar louco. Joel exala um cheiro acre. Longe dali, muito ao norte da cidade, Flávia não chora. Flávia não se trancou para chorar, mas para fugir das lágrimas dos outros.
Não há luz elétrica na cela onde Roberto afunda a cara nas mãos, e é uma sorte. A noite despencou, violenta, através das grades. Roberto está banhado de suor. O calor arranca um cheiro insuportável do corpo de Joel. Assim como está, Joel parece mais alto. Ainda que a caída da noite não alivie a asfixia da umidade quente da cela, ao menos serve para bonar os rasgos do rosto desolado estendido aqui no chão, ao alcance da mão, com a mandíbula destroçada por um dos tiros. Desde que os guardas atiraram o cadáver de Joel no chão de cimento, Roberto, agachado contra a parede, não foi capaz de se mover. “Aqui deixamos teu amigo, para te fazer companhia.” Tinham moído os ossos de Roberto a porradas, mas não é por isso que ele está paralisado.
Flávia não sabe onde está Joel. Reclamamos o corpo, Flávia. As vozes parecem trapos. Ela tampouco se mexeu. Há horas permanece deitada sobre o altar, com a testa afundada num buraco de pedra e os braços caídos, inertes, junto ao corpo. Sobre a cabeça de Flávia ergue-se a lança do santo guerreiro, relampejando à luz das velas que trazem calor ao ar inchado de dezembro. Atrás do cavalinho branco de São Jorge – patas voadoras, crinas flamejantes – há um porta-retratos de moldura dourada. Dentro do porta-retratos sorri, melancólico, envolvido em barba rala e fumaça de um charuto Partagás, o rosto de outro santo vingador muito mais atual. A maré dos murmúrios surge sem descanso através da parede de papelão, coitadinha, ave-maria, coitadinha, as orações e as queixas dos parentes e dos amigos e dos vizinhos. Flávia não quer sair, Flávia não quer ficar.
Roberto continua sentado no chão. As estrelas arrebentam no céu e Roberto não as vê, os habitantes da cidade se atropelam pelas avenidas e ele não os ouve. Os habitantes da cidade estão sãos e salvos e lembram disso uns aos outros, alguém vira porque alguém passa, cada um sente as próprias pernas no ritmo das pernas dos outros: cada formiga toca as antenas de outra formiga. Roberto escuta nada mais que o ir e vir dos passos do guarda, que não tem rosto nem responde perguntas. Escuta, também, às vezes, chiado de uma centopéia que cai do teto. Um retângulo de luz, cortado pelas sombras das barras de ferro, se projeta na parede; de tanto em tanto, é coberto pelo corpo do guarda que passa. Passou um dia. Quanto falta, Roberto? Quanto tarda um homem em ficar louco? Ontem à noite, a esta hora, Roberto estava livre, o motor se negava a responder, uma sensação de náusea subia do fundo do estômago de Roberto, e ele preferia jogar a culpa sobre os cigarros. Antes dos tiros, Joel tinha dito: “Não te desejo sorte, conspirador. Gente como você não precisa de sorte”. Tinham se abraçado, e depois Joel tinha tocado com o dedo indicador a linha de vida de sua mão esquerda. Joel sempre fazia isso. Tinha uma linha de sete vidas, longa e sem rachaduras. Sorria com todos os dentes: “Coisa ruim não morre”.
Fazia mais de um ano que Flávia não via Joel. Joel nunca soube que seu filho dizia papai para o sapato. Flávia sim, sabe que nunca inventará com ninguém o que inventara, era tanta a alegria, para Joel. Para quem, agora? Para quê, agora? Todos os quadrinhos vazios de todos os futuros calendários... Todos os dias serão quarta-feira de cinzas; dias de derrota. Um cara assim se acaba e não há substituto. Joel, que era capaz de acender o fogo com os olhos ou com as mãos. Flávia, que vai precisar, mas não vai querer esquecer. Roberto, que se pergunta se existe um jeito de defender-se da loucura, quando a loucura avança na escuridão como um gato que fede a coisa podre e tem lanternas nos olhos. Flávia quebra as unhas contra o altar de pedra e as gotas de suor despencam, lentas, das sobrancelhas de Roberto. Roberto morde os lábios até sentir o sabor do próprio sangue. Sente prazer; e alívio. E se gritasse? Esse morto está tomando meu lugar. Mas eu não sabia, Joel. Por que você não saiu? Que culpa...? Foi uma loucura ficar, Joel. O motor não pegava, Roberto triturava a chave do carro e o motor não pegava. A bateria? As velas? O platinado? Você mesmo, Joel, tinha dito que esse carro não servia. E soaram os primeiros tiros e finalmente o motor pegou, Joel, a explosão da chispa, o rumor da salvação, os quatro pistões comprimindo e libertando toda aquela força e eu esperava você, Joel, eu esperei durante um século, os tiros estouravam na minha cabeça e eu não via ninguém, nem você nem eles nem ninguém e o pé esmagou o acelerador por conta própria, o acelerador até o fundo, e eu acreditei... Sim, eu, eu comecei a voar. Mas o motor falhava. O motor estava morrendo, Joel.
Esvaziaram nele os carregadores de várias pistolas, dessas de regulamento. Uma boa quantidade de chumbo no corpo de Joel. As balas 45 são gordas como dedos. A mão de Joel ficou crispada no cabo do revólver que já estava com o tambor vazio. Desenharam com giz os limites do corpo no asfalto. O giz escorregava. Também o crivaram os disparadores das máquinas fotográficas, os polegares dos fotógrafos nos gatilhos das rolleys e das leikas, antes e depois de que virassem o corpo e aparecesse este rosto que tinha sido tão simpático.
Tem um homem morto ali. Tem nove furos de bala.” E Flávia não desmaiou nem chorou nem nada. Recordou: “Feitiço, coisa feita... O fogo não sente frio. A água não sente sede. O vento não sente calor. O pão não sente fome”. E Roberto despertou, depois do capuz e dos choques e da surra, no chão da cela, e, mesmo que não tivessem ainda trazido Joel, os olhos abertos de Joel já estariam acusando-o de continuar vivo.
Eduardo Galeano, in Vagamundo

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