O
doutor pousou a paciência na palma da mão. O tempo se compridava, a
consulta já excedia seu próprio valor. Voltou a olhar a mulher
sentada à sua frente. Tinha deixado de lhe ouvir desde há minutos.
Sua distração se concentrara nas pernas da dona que cruzavam e
contracruzavam. Havia ali demasiada carne para pouco tecido.
Resignado, o advogado voltou aos deveres da escuta. A mulher avançava
as razões de ter deixado seu esposo.
— Meu
marido ressona.
— Ora,
isso é um motivo? Há mais gente a ressonar do que a dormir.
— Sim,
senhor doutor. Mas este meu marido ressona ao contrário.
— Ao
contrário?
— Sim,
ressona só quando está acordado.
O
doutor pensou: isto é mulher de fé e vinagre. E pediu mais matéria,
mais fundamento. Mas a cliente peregrinava por discurso tão inútil
como óculo em mão de cego:
— O
senhor olhe bem para mim. Acha que já caduquei? Não, não precisa
dizer nada. A resposta está à vista nos seus olhos, doutor. Mas
esse meu marido é uma alma pernada. Se o visse: altivo,
empertigordo. Mas só da gola para cima. Porque, nos pisos
inferiores, da cintura para...
—
Desculpe, minha senhora. Mas esses
detalhes...
—
Detalhes? Mas são esses detalhes que
fazem filhos! O senhor me desculpe mas o senhor nasceu foi de um
detalhe, doutor... Intimidade não me deixa intimidada. O lixo começa
é no nosso nariz. Mas voltando ao marido, antes que esfrie. Se
soubesse como ele era namoradiço. Não havia noite, doutor. Como é
que ele ficou-se assim? Eu já pensei, doutor. Sabe o que ele diz:
que eu não lhe dou vontade porque passo a vida a chorar. Pode ser
essa uma razão? Sim, é verdade, eu gosto muito de chorar. Não
posso ficar um dia sem me derramar. Mas, para ele, para o meu
ex-antigo-marido isso nunca foi motivo de desistência. Ele antes me
subia, sem escorregar nas minhas lágrimas. Só agora é que não
visita meu corpo. E sabe por quê? Sabe por que ele ficou assim? Foi
por ele me beijar com olhos fechados. Sim, é verdade, ele me beijava
com os olhos todos fechados. O doutor, me perdoe, mas como é que o
senhor beija?
— Como
é que eu beijo? Que disparate…
— Não
diga que o senhor não beija, doutor? Se não quiser não responda.
Mas o senhor bem sabe: um homem não pode nunca beijar de olhos
fechados...
— Eu
sei o que se diz sobre isso, que se perde destino e alma, essas
coisas... Mas eu não me preocupo com isso. Aliás, não fecho os
olhos.
— Nem
nunca feche, doutor. Se não perde caminho de regresso.
O
doutor jurista voltou a fixar a elegância com que a senhora se
cruzava no respectivo o seu assento. Ela, de repente, se calou. Ficou
assim, em pausa. Depois, chegou a cadeira dela mais para a frente e
murmurou:
— Vá,
doutor: não comece a encobrir o meu marido. Não faça de diabo do
advogado...
— É
ao contrário, minha senhora.
— Ao
contrário, vamos ver depois. Sabe doutor, tenho estado a olhar os
seus olhos. O senhor costuma chorar?
— Eu?
Chorar?
— Sim,
sem vergonha. Confesse.
E,
dizendo isto, ela saiu da sua cadeira e se sentou na secretária.
Seus joelhos tocavam o doutor responsável. A mulher passou os dedos
pelo rosto dele e disse:
—
Aposto que o senhor não sabe chorar
direito. Chorar tem as suas técnicas, doutor. Eu tenho muita certeza
neste assunto. Me formei em tristezas, sou cursada. A dor o que é? A
dor é uma estrada: você anda por ela, no adiante da sua lonjura,
para chegar a um outro lado. E esse lado é uma parte de nós que não
conhecemos. Eu, por exemplo, já viajei muito dentro de mim...
A
mulher descia agora da secretária e se anichou no colo do advogado.
O homem, equivocado, se deixou. Parecia que ele nela se abandonava. A
mulher prosseguia seus avanços:
— Eu
lhe vou dar aulas de choro. Não faça essa cara. Homem chora, sim.
Só que tem uma própria maneira de fazer. Vou-lhe ensinar os
procedimentos do choro.
— Mas
eu, minha senhora, com a franqueza...
— Com
a franqueza, com a fraqueza. Me escute, aprenda. Não há que ter
vergonha. Primeiro, faz o seguinte: o doutor junta no peito não
aquela imediata e justificada tristeza. Faz muito mal chorar uma
tristeza de cada vez. Em cada momento a gente tem que chorar todas as
tristezas de todas as vidas. É preciso chamar as antigas amarguras,
juntar todas aflições. Faz conta construímos um dique, grande,
para estancar as águas. Aqui, está a ver? Deixe-me pôr a mão no
seu peito. Vá. Desabotoe a camisa, doutor. Sim, aqui. É aqui que
vão inchar os afluentes e rios até começar uma inundação. De
repente, o senhor vai ver: tudo se rebenta e águas jorram. O choro é
uma paixão: a gente acaba e estamos cansados, como os corpos que
fizeram amor.
O
respeitoso legislador já estava mais inclinado que um poente. A
gravata dançava, desasteada, na mão da cliente. Um sapato dela,
inexplicável, se refastelava em cima do computador. A senhora
ajustou horizontalidade sobre o jurista.
— Me
diga, doutor: o senhor quer chorar comigo agora? Não, não tenha
receio. É que há um segundo mandamento na ciência da tristeza.
Nunca se deve chorar sozinho. Isso faz muito mal, dá muito prejuízo
para a tristeza. Chorar isolado chama os maus espíritos. Se quiser
abater uma lágrima então chore juntinho com alguém, os dois em
afinamento.
Ela
puxou o rosto dele de encontro ao seu entreaberto decote. A si mesma
ela mais se desabotoou. Nos seios, ela sentiu o úmido dos lábios
dele. Mais que isso, ela sentiu as lágrimas, volumosas aguinhas que
lhe desciam. Eram tão gordas que lhe formigaram pelo corpo,
cocegosas. E os dois foram cumprindo o código das leis que mandam
que todo o corpo seja um copo: inclinado se vaza sobre o chão.
Aqueles dois, se morressem naquele instante, não seria em imoral mas
imortal posição.
E
foi aquele quadro que viu, em abismada surpresa, a secretária do
doutor, ao abrir a porta do consultório. O jurista e sua cliente, em
braços mútuos, ambos em derramados prantos. Por que choravam dessa
inundada maneira, a secretária não entendeu. O mais a chocou foi
ver como o doutor consumava seus beijos: de olhos fechados, mais
fechados que a porta que ela empurrou para se separar do espanto.
Mia
Couto, in Estórias abensonhadas
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