terça-feira, 14 de junho de 2016

O calcanhar de Virigílio

Hortência vai de mágoas e panos. A manhã cresceu no pino do sol e a mulher segue o caixão de seu marido. No enterro se conta ela e escassas tias. Ninguém chora. Parece o falecido não era parente de vivente. Hortência caminha sob a chuva, intransitiva em meio do trânsito. Sempre ela tivera medo das viaturas, seus modos de dono, ditando leis. Ela que nem de casa era dona. Porém, no presente desfile, ela já perdera receios como se os pés e alcatrão tivessem trocado intimidades.
De fato, em vida do falecido, ela se fizera várias vezes naquela estrada. No repetepete da noite, ela ali vinha resgatar o falecido Filimone, descarreirado no regresso da cervejaria. Noites cacimbolentas, ela apanhava o marido numa anônima berma e lhe juntava as pernas aos passos. Em Filimone, o álcool tinha uma vantagem: ele se abandonava, moço de sua esposa, filho de suas gordas ternuras. No resto, o marido deixou registo foi de vagabundagem. O lugar onde ele permanecera mais tempo: o ventre de sua mãe. Aqueles anos ele vivia às custas da bondade dela. Insensível aos pedidos dela:
Bêbado, eu? Veja, Hortência: até sei andar em pé!
O álcool lhe fermentara o sangue, invalidando-o para pai, despromovendo-o para marido. Com a esposa Filimone só ostentava maus-tratos.
Roubaram-me tudo, mulher. Agora o único poder que me resta é fazer-te mal.
Ela se acostumara. Nas consecutivas madrugadas Hortência saía de casa para procurar seu homem. Ela dera a completa volta às bermas e valetas, em todas se debruçara para apanhar o esparramado Filimone.
Nunca mais ela terá que carregar o peso dele. Esta é a derradeira transportação do seu corpo. Todo dinheiro ela gastara no funeral. O carro era despesa demasiada. Assim, se arrumou o caixão em tchova-xitaduma. As tábuas não uniam bem e a luz, às fatias, deixava entrever, dentro, o deitado corpo. O caixão fora feito de emendas. Hortência juntou mesa, cadeira e caixotes. Montoou aquela madeira para lhe dar aquele escuro destino. O carpinteiro do bairro, Virigílio Prego, não cobrou mão-de-obra.
São serviços de coração: hoje morro eu, amanhã morres tu.
Além disso eram colegas de bebida, ele e o falecido. Mas a obra ficara imperfeita de mais. O carpinteiro se desculpava:
Em casa de morto não podemos dedicar muita mão. Fornece má-sorte.
Além disso, madeira boa é para vestir a vida. E mais se escusava, com medo do fatal assunto. Hoje morres tu, amanhã morremos todos. E se excedia, babas e cuspes. A manga da camisola lhe acudia, em limpeza do nariz.
Esse mundo está feio, mal-acabado. De modo que só vale ser visto através da cerveja. Não concorda-me, Hortencinha?
Hortencinha, com que então? O homem já ia de diminutivos para baixo. Afinal, a intenção do carpinteiro era cobrar a obra por carícia? Hortência nem resistiu, mais flácida que o embalado Filimone. Rendeu-se ao assalto do madeireiro. Estava vazia, a mágoa lhe roubara o razoável senso.
É assim mesmo, Hortência: o hoje morre hoje.
Virigílio e o prego. Para a mulher tanto se fazia como se desfazia. O bicho faz de morto para sobreviver. Ela fazia de bicho.
No funeral, porém, Virigílio não constou. Hortência queria ajuda, nunca tanto ela careceu de apoio. Paciência. Afinal, o carpinteiro já tinha deixado adivinhar sua provável ausência. Para entendedor como ela meia palavra já é de mais.
Se calhar nem hei-de poder ir. É que, nesse tempo de frio, me prende todos os calcanhares.
No cemitério, a viúva não chora, triste que está. Lágrima liga bem é nos que ainda guardam esperança. As tias se aproximam da cova. Elas choram mas sem molho da alma. Ela enxota as restantes mulheres. Diz que quer voltar a casa, arrumar as coisas. Que coisas, se interrogam as mulheres. E deixam-na, infelizes de não poderem mais debicar em desgraça alheia.
Se calhar, ela nem aceitara viuvez, diziam umas. Não se viu nem uma aguinha de tristeza: pode ser? Hortência não se entendia, após a morte do falecido. Requer-se que a tristeza seja parecida, capaz de ser falada pelas mil bocas, espalhável em caóticas desordens. Mas aquela melancolia de Hortência fazia medo de tão própria e única. Por isso, dela todas se desavizinharam.
A única companhia que lhe restava era o carpinteiro. Este lhe chegava sempre a desoras, perdido o fio-de-prumo do tempo. E se passou a ver aquilo que nunca, no bairro, se assistira. Hortência cabistonta de bêbada, no carreiro da cervejaria. A viúva se entornava pelas bermas. Por que motivo se entregava à bebida com tais assanhos? Quem pode saber? Verdade é mentira que não fala a mesma língua do pensamento. Hortência explicava:
Ando à procura de meu Filimone. Deve estar caído por aí.
E assim, antes e depois de Filimone aquela mulher desconhece o sabor do sono, em noite e descanso. Hortência soma mais olhos que fadiga? Não há vigente testemunha. Apenas o carpinteiro interrompe a solitária existência da viúva. Os dois somam a pessoal e intransmissível embriaguez. E se riem, em alegrias que não são deste mundo. Breves são os enquantos, nenhuns os encantos.
Se um dia eu me escorregar, dormidinha na valeta, você me apanha, Virigílio Prego?
Com a certeza, Hortência. Amanhã eu, você hoje: é assim a vida...
Até que, uma noite, o frio lembrou à viúva que um exato ano decorrera sobre o funeral de Filimone. Hortência já nem conhecia o direito e o avesso de sua alma sóbria. Tal morte: acontecera no verso ou no inverso da sua verdadeira vida? Ela fechou os olhos e uma inundação de tristeza cobriu seu corpo. Hortência ensaiou matematicar sua vida. Mas não havia conta que fazer. Uma única ideia lhe ocupava: havia que cerimoniar, por segunda vez, seu distante marido.
Hortência enxugou o rosto e se decidiu pelo escuro, rumo ao cemitério. Levava ao falecido não as consagradas oferendas, panos e farinha. Em seu cesto seguiam cervejas, às dezenas. Ainda passou por casa do compadre Prego a ver se ele se ajuntava ao individual cortejo. Ele foi dizendo que sim, ela que fosse abrindo cacimbo, na frente. Ele já iria, claro e isto-aquilo:
Hoje eu, amanhã todos.
Hortência entendeu. Lhe cabia a solidão e o despovoado caminho. Chegou, se sentou junto à cova e foi destampando as garrafas. Bebia e entornava, seus lábios em si, lábios do falecido na terra.
Beba, Filimone, agora já não tenho que lhe apanhar.
Depois, já trocadas as visões, Hortência regressou pelo escuro. Quem sabe que percalço, se o cacimbo se humana desumanidade, levou a viúva a se despenhar em fundo de valeta. Houve quem visse sinais de suas roupas, entornadas no gélido fundo. Se houve quem viu, nenhuma mão se aprontou para lhe desafligir. Foram, sim, alertar Virigílio Prego. Ele que fosse lá, afinal Hortência era sua companhia. Mas o carpinteiro espreitou a fria cacimba e se lembrou do calcanhar, modos que as dores lhe espetavam quando o tempo mudava:
Hoje cada um. Amanhã ninguém.
Na vala fria, Hortência vai sentindo um sono maior que a noite. Que se passa, pergunta ela. Estou deitada na terra e não me chega o leito? E ela se enrosca para caber toda no ventre da noite. Ou, quem sabe, se ajeita para que os braços de Filimone a venham buscar?
Mia Couto, in Estórias Abensonhadas

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