Diz-se
de Machado: um escritor de fina ironia. Sempre se repete isso. Muito
se fala a respeito dessa ironia, apontada como marca da estética
machadiana. Estratégia de pudor e de elegância – como as
reverências dos senhores de pincenê nos salões cariocas do século
XIX. Mas a ironia não se reduz ao sarcasmo inteligente, não é só
o pudor que se disfarça em duplo sentido. A ironia é uma
interrogação. Ali onde a palavra, poderosa, reluz, ela desmascara a
presença do opaco.
A
ironia é, antes de tudo, o lado instável da língua. Incerteza que
me acompanha enquanto releio as Memórias
póstumas de Brás Cubas
(editora Globo, prefácio de Abel Barros Baptista). Machado é
difícil porque é irônico? Ou é difícil porque, sob os brocados
da ironia, ele desmascara a indecência da dor? Sua literatura cava
um inferno de perguntas. Vejam Brás Cubas: é um personagem que se
esquiva e que se desvia. Sua inquietação é só um jogo de
espírito? Certamente não. Há uma dor que ele carrega. A ironia não
é só um disfarce que facilita, por delicadeza, a aproximação da
verdade; ela é uma pinça incômoda que a repuxa e a aperta. A
ironia com um grito de dor? É o próprio Cubas, no capítulo 41,
quem responde: “A dor que se dissimula dói mais”.
Na
ironia, dizemos uma coisa para dizer outra. Somos sutis e nos
sentimos inteligentes. O que parece um disfarce ou uma proteção,
porém, é mais um escândalo. Com ela, Machado investe contra as
facilidades de pensamento. Se há uma vantagem em escrever memórias
desde a fronteira da morte, como faz Brás Cubas, é que isso estanca
a dança das ilusões. Já não existe o apoio das modas, dos
consensos, das circunstâncias. Nem a leveza do transitório nem a
proteção elegante do mundano. Nada.
Morto
(fora de si ou, pelo menos, fora do próprio corpo) Brás Cubas, aí
sim, cai em si. A narrativa de sua vida é isto: um arremate. Não
que isso estanque o sangramento das perguntas. Morto, ainda assim
Brás Cubas permanece no inconcluso. Escreve na esperança de uma
solução que, porém, não virá. Creio que no centro das Memórias
póstumas de Brás Cubas
está a Teoria do Nariz, que ele desenvolve no capítulo 49. Para
livrar-se do circunstancial e do externo, o homem deve contemplar o
próprio nariz, Cubas sugere. Só assim “embeleza-se no invisível,
apreende o impalpável”. Para ilustrar sua tese, ele narra a fábula
do chapeleiro. Um chapeleiro se mortifica com o sucesso do rival.
Sofre, até que, por exaustão, seus olhos se detêm no próprio
nariz. Só então, quando se afasta da imagem enganosa do outro e se
restringe a seus limites anatômicos, ele cai em si e se equilibra. A
fábula do chapeleiro leva Brás Cubas a concluir que duas forças
governam o homem: o amor (que garante a procriação) e o nariz
(última fronteira da harmonia interior). Ironia ou destino?
Amigo
de infância e pregador de uma filosofia da miséria, Quincas Borba
(ao trazer de volta um “passado roto, abjeto”) reaparece para
denunciar a ineficácia de suas defesas. De nada adianta agarrar-se a
um amor (Virgília), de nada adianta proteger-se com a capa sutil da
dissimulação. Mesmo na embriaguez da paixão, mesmo na elegância
da linguagem, a miséria continua. Borba cria o humanitismo, “sistema
de filosofia destinado a arruinar todos os sistemas”. Para isso,
não parte da tradição nem do bom senso, mas da vida real. A vida,
ele diz, começa na fase estática, grande magma anterior à criação;
prossegue na fase expansiva, na qual as coisas proliferam; e chega,
enfim, à fase dispersiva, em que o homem aparece com sua cauda de
palavras. Homem-pavão: a ironia como a mais nobre das plumas. Mas
nada disso o protege do incerto. A dispersão está nas memórias.
Está na literatura. Já no prólogo que escreveu para a quarta
edição das Memórias
póstumas, de 1899, a
última que lançou em vida, Machado de Assis fala de seu livro como
“uma obra difusa”. Mesmo depois de morto, o homem não se livra
da instabilidade. De nada servem o túmulo solene, o busto de bronze,
o epitáfio em versos. Nada se fixa.
Diz
Machado, com razão, que seu livro “é e não é” um romance. O
livro trafega entre o Sim e o Não. Impossível escolher. Lembro aqui
de Eugênia, a Vênus Manca, amor fugidio de Cubas, com seus olhos
lúcidos e sua boca fresca – bela, mas coxa. “Esse contraste
faria suspeitar que a natureza é às vezes um imenso escárnio”,
ele anota. Eugênia é o enigma. E, diz Brás Cubas, “quando não
se resolve um enigma, o melhor é sacudi-lo para fora da janela”. É
o que ele faz, e de nada adianta também. O difícil não é
esconder-se sob a frase elegante, mas sustentar a pinça do paradoxo.
Escolha que me cabe, também, como leitor. Desistir de qualquer
solução. Dispensar a ilusão de um sistema ou teoria que explique o
livro. “Este livro e o meu estilo são como os ébrios, guinam à
direita e à esquerda”, Cubas me adverte. E em seguida desabafa:
“Que melhor não era dizer as coisas lisamente, sem todos estes
solavancos!”. Mas seria possível? E isso seria realmente dizer?
Iludimo-nos,
acreditando que memórias, biografias, confissões solucionam e
fecham o passado. Que nada. Machado nos leva a ver, ao contrário,
como a reconstituição do passado é atordoante. Não só
atordoante: como ela conduz a formas ainda mais graves de
desconhecimento. Para se defender de seus críticos do futuro (nós?
eu?), Brás Cubas tenta explicar o inexplicável. Lamenta-se:
“Valha-me Deus, é preciso explicar tudo!”. Nem as boas palavras
nem o desabafo sincero o salvam.
No
fecho do romance, o narrador de Machado ainda se apega a um consolo:
“Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de
nossa miséria”. Escreveu suas memórias, mas não se livrou da
esperança de uma solução! Seu desamparo me faz lembrar de Pozzo, o
odiento (e irônico) personagem de Samuel Beckett, em Esperando
Godot. Ele sintetiza
com palavras firmes não só a aflição de Brás Cubas, mas o
tormento de todos nós: “O nascimento ocorre sobre um túmulo, o
dia brilha um instante, depois surge novamente a noite”. A vida é
só um fio de luz. E é com isso que se lê.
José
Castello, in Sábados
inquietos
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