quinta-feira, 23 de junho de 2016

Blefes

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Ninguém conhece a alma humana melhor do que um jogador de pôquer. A sua e a do próximo. Numa mesa de pôquer o homem chega ao pior e ao melhor de si mesmo, e vai da euforia ao ódio numa rodada. Mas sempre como se nada estivesse acontecendo. Os americanos falam do poker face, a cara de quem consegue apostar tendo um Royal Straight Flush ou nada na mão com a mesma impassividade, embora a lava esteja turbilhonando dentro. Porque sabe que está rodeado de fingidos, o jogador de pôquer deve tentar distinguir quem tem jogo de quem não tem e está blefando por um tremor na pálpebra, por um tique na orelha. Ou ultrapassando a fachada e mergulhando na alma do outro. Não se trata de adivinhar o caráter. Não é uma questão de caráter. O blefe é um lance tão legítimo quanto qualquer outro no pôquer. Os puros são até melhores blefadores pois só quem não tem culpa pode sustentar um poker face perfeito sob o escrutínio hostil da mesa. Há quem diga que ganhar com um blefe supõe ganhar com boas cartas e que é no blefe que o pôquer deixa de ser um jogo de azar, e portanto de acaso, e se torna um jogo de talento. Já fora do pôquer o blefe perde sua respeitabilidade. É apenas sinônimo de engodo, geralmente aplicado a pessoas que não eram o que pareciam ou fingiam ser. A história dos presidentes do Brasil desde Jânio tem sido uma sucessão de blefes. Jango também foi um blefe, na medida em que aparentava ter um poder que não tinha. O golpe de 64 foi um blefe para quem acreditou nele. Um blefe involuntário. Sarney não foi um blefe completo porque ninguém esperava que ele fosse muito diferente. Collor foi um blefe deliberado que manteve a versão política do poker face, que é uma cara-de-pau sustentada mesmo sob a ameaça do ridículo. E chegamos à social-democracia brasileira no poder, que pode até estar agradando a muita gente, mas é outro blefe em relação às expectativas que criou e ao que podia ter sido. Ou talvez esse blefe tenha uma história antiga, e a gente é que não tinha notado.
Luís Fernando Veríssimo, in As mentiras que os homens contam

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