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Caía
sobre eles a sombra da tarde como luto fechado. Nos bares, nos
botequins, no balcão das vendas e armazéns, onde quer que se
bebesse cachaça, imperou a tristeza e a consumação era por conta
da perda irremediável. Quem sabia melhor beber do que ele, jamais
completamente alterado, tanto mais lúcido e brilhante quanto mais
aguardente emborcava? Capaz como ninguém de adivinhar a marca, a
procedência das pingas mais diversas, conhecendo-lhes todas as
nuanças de cor, de gosto e de perfume. Há quantos anos não tocava
em água? Desde aquele dia em que passou a ser chamado Berro Dágua.
Não
que seja fato memorável ou excitante história. Mas vale a pena
contar o caso pois foi a partir desse distante dia que a alcunha de
berro dágua incorporou-se definitivamente ao nome de Quincas.
Entrara ele na venda de Lopez, simpático espanhol, na parte externa
do Mercado. Freguês habitual, conquistara o direito de servir-se sem
auxílio do empregado. Sobre o balcão viu uma garrafa, transbordando
de límpida cachaça, transparente, perfeita. Encheu um copo, cuspiu
para limpar a boca, virou-o de uma vez. E um berro inumano cortou a
placidez da manhã no Mercado, abalando o próprio Elevador Lacerda
em seus profundos alicerces. O grito de um animal ferido de morte, de
um homem traído e desgraçado:
–
Águuuuua!
Imundo,
asqueroso espanhol de má fama! Corria gente de todos os lados,
alguém estava sendo com certeza assassinado, os fregueses da venda
riam às gargalhadas. O berro dágua de Quincas logo se espalhou como
anedota, do Mercado ao Pelourinho, do largo das Sete Portas ao Dique,
da Calçada a Itapoã. Quincas Berro Dágua ficou ele sendo desde
então, e Quitéria do Olho Arregalado, nos momentos de maior
ternura, dizia-lhe Berrito por entre os dentes mordedores.
Também
naquelas casas pobres das mulheres mais baratas, onde vagabundos e
malandros, pequenos contrabandistas e marinheiros desembarcados
encontravam um lar, família e o amor nas horas perdidas da noite,
após o mercado triste do sexo, quando as fatigadas mulheres ansiavam
por um pouco de ternura, a notícia da morte de Quincas Berro Dágua
foi a desolação e fez correr as lágrimas mais tristes. As mulheres
choravam como se houvessem perdido parente próximo e sentiam-se de
súbito desamparadas em sua miséria. Algumas somaram suas economias
e resolveram comprar as mais belas flores da Bahia para o morto.
Quanto a Quitéria do Olho Arregalado, cercada pela lacrimosa
dedicação das companheiras de casa, seus gritos cruzavam a ladeira
de São Miguel, morriam no largo do Pelourinho, eram de cortar o
coração. Só encontrou consolo na bebida, exaltando, entre goles e
soluços, a memória daquele inesquecível amante, o mais terno e
louco, o mais alegre e sábio. Relembraram fatos, detalhes e frases
capazes de dar a justa medida de Quincas. Fora ele quem cuidara,
durante mais de vinte dias, do filho de três meses de Benedita,
quando esta teve de internar-se no hospital. Só faltara dar à
criança o seio a amamentar. O mais fizera: trocava fraldas, limpava
cocô, banhava o infante, dava-lhe mamadeira. Não se atirara ele,
ainda há poucos dias, velho e bêbedo, como um campeão sem medo, em
defesa de Clara Boa, quando dois jovens transviados, filhos da puta
das melhores famílias, quiseram surrá-la numa farra no castelo de
Viviana? E que hóspede mais agradável na grande mesa na sala de
jantar na hora do meio-dia... Quem sabia histórias mais engraçadas,
quem melhor consolava das penas de amor, quem era como um pai ou como
um irmão mais velho? Pelo meio da tarde, Quitéria do Olho
Arregalado rolou da cadeira, foi conduzida ao leito, adormeceu com
suas recordações. Várias mulheres decidiram não buscar nem
receber nenhum homem naquela noite, estavam de luto. Como se fosse
quinta ou sexta-feira santa.
Jorge
Amado, in A morte e a morte de Quincas Berro Dágua
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