Ela
então me contou seus pecados; primeiro o primeiro, quando ainda era
mocinha; depois o mais feio, que foi uma coisa que ela não queria,
foi resistindo, mas você compreende, chegou a um ponto em que não
dava mais jeito. O pior é que nessa ocasião tinha um rapaz de quem
ela gostava muito e queria ser fiel a ele; “foi sujeira”,
confessa, “foi sujeira minha”; mas a verdade é que a coisa veio
devagar, foi aceitando presentes, depois não sabia o que seria mais
vigarista: negar-se ou dar-se; aliás tinha uma simpatia sincera pelo
sujeito; mas gostar mesmo era do outro. E contou mais algumas coisas.
Disse uma palavra feia a respeito de si mesma e pediu minha opinião:
— Não
é verdade? — me olhando nos olhos.
Calei-me;
ela insistiu, eu fiz uma evasiva meiga:
— Você
é um amor.
Então,
meu Deus, ela se pôs filosófica. Esticou o longo corpo no sofá,
sustentou a cabeça nas mãos:
— Esta
vida...
E
disse coisas; mas sempre queria saber minha opinião. Que eu era um
homem vivido, eu sabia as coisas, era um escritor. Ponderei que essas
coisas quem sabe melhor é padre; de preferência padre velho, que já
ouviu muita história, sabe dar conselho. Disse que não; que padre,
ela já sabe o que padre vai dizer, de maneira que não adianta; “não
gosto de padres”.
— Mas
você não é católica?
Era,
mas não gostava de padres. Isto é, conheceu um padre que era
formidável, aliás, era um frade. “Qual é a diferença?” Dei
uma resposta vaga, ela fez “ahn...” e virou-se, ergueu uma longa
perna no ar, em um movimento perfeito: “Preciso voltar a fazer
ballet , eu ando muito preguiçosa.”
Depois,
com o olho triste, confessou que às vezes danava a pensar no futuro,
tinha medo. Notei:
—
“Pensava no futuro e tinha medo.”
Isto é um verso de Augusto dos Anjos, você disse quase igual.
Ficou
encantada em ter dito uma coisa parecida com o verso de um poeta;
pensei em dizer que ela fazia poesia como monsieur Jordan fazia
prosa, mas a citação era muito trivial e, no caso, daria muito
trabalho explicar. Agora ela estava deitada com as mãos atrás da
cabeça (os seios quase sumiam) e erguendo as pernas fazia flexões
de joelho, perfeitas.
—
Quanto livro você tem aí! Eu sou tão
ignorante! Precisava ler muitos livros.
Ergueu-se,
tirou um livro da estante. Era Soviet Economic Aid, de
Berliner. Pegou outro, era O fantasma da inflação, de
Humberto Bastos. Olhou as capas, comentou apenas:
— Eu
sou burra...
— Por
que você usa esse penteado assim?
Então
ela confessou que tinha a testa muito feia. Aliás achava que tinha
muitas coisas feias.
— Eu
sou cheia de complexos.
Eu
disse com sinceridade:
— Você
devia toda manhã agradecer a Deus, ajoelhada, tudo o que Ele lhe
deu.
Ela
riu, ensaiou uns passos de ballet , elevou no ar um pé nu:
— A
Deus ou ao Diabo?
— Ao
Diabo também.
Sem
interromper o exercício, ela me olhou de lado:
— Você
é gozado.
Rubem
Braga, in Ai de ti, Copacabana
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