domingo, 29 de maio de 2016

Tudo turbulindo


Mas, de seguinte, eu pensei! se matarem a velha Duzuza, pelo resguardar o segredo, então é capaz que matem a filha também, Nhorinhá... então é assassinar! Ah, que se puxou de mim uma decisão, e eu abri sete janelas! ― Disso que você disse, desconvenho! Bulir com a vida dessa mulher, para a gente dá atraso... ― eu o quanto falei. Diadorim me adivinhava! ― Já sei que você esteve com a moça filha dela... ― ele respondeu, seco, quase num chio. Dente de cobra. Aí, entendi o que pra verdade! que Diadorim me queria tanto bem, que o ciúme dele por mim também se alteava. Depois dum rebate contente, se atrapalhou em mim aquela outra vergonha, um estúrdio asco.
E eu quase gritei! ― Aí é a intimação? Pois, fizerem, eu saio do meio de vós, pra todo o nunca. Mais tu há de não me ver!...
Diadorim pôs mão em meu braço. Do que me estremeci, de dentro, mas repeli esses alvoroços de doçura. Me deu a mão; e eu. Mas era como tivesse uma pedra pontuda entre as duas palmas. ― Você já paga tão escasso então por Joca Ramiro? Por conta duma bruxa feiticeira, e a má-vida da filha dela, aqui neste confim de gerais?! ― ele baixo exclamou. E tive ira. ― Dou! ― falei. Todo o mundo, então, todos, tinham de viver honrando a figura daquele, de Joca Ramiro, feito fosse Cristo Nosso Senhor, o exato?! E por aí eu já tinha pitado dois cigarros. Ser dono definito de mim, era o que eu queria, queria. Mas Diadorim sabia disso, parece que não deixava:
Riobaldo, escuta, pois então: Joca Ramiro era o meu pai... ― ele disse ― não sei se estava pálido muito, e depois foi que se avermelhou. Devido o que, abaixou o rosto, para mais perto de mim.
Acalmou meu fôlego. Me cerrou aquela surpresa. Sentei em cima de nada. E eu cri tão certo, depressa, que foi como sempre eu tivesse sabido aquilo. Menos disse. Espiei Diadorim, a dura cabeça levantada, tão bonito tão sério. E corri lembrança em Joca Ramiro: porte luzido, passo ligeiro, as botas russianas, a risada, os bigodes, o olhar bom e mandante, a testa muita, o topete de cabelos anelados, pretos, brilhando. Como que brilhava ele todo. Porque Joca Ramiro era mesmo assim sobre os homens, ele tinha uma luz, rei da natureza. Que Diadorim fosse o filho, agora de vez me alegrava, me assustava. Vontade minha foi declarar: ― Redigo, Diadorim: estou com você, assente, em todo sistema, e com a memória de seu pai!... Mas foi o que eu não disse. Será por quê? Criatura gente é não e questão, corda de três tentos, três tranços. ― Pois, para mim, pra quem ouvir, no fato essa Ana Duzuza fica sendo minha mãe! ― foi o que eu disse. E, fechando, quase gritei: ― Por mim, pode cheirar que chegue o manacá: não vou! Reajo dessas barbaridades!...
Tudo turbulindo. Esperei o que vinha dele. De um acêso, de mim eu sabia: o que compunha minha opinião era que eu, às loucas, gostasse de Diadorim, e também, recesso dum modo, a raiva incerta, por ponto de não ser possível dele gostar como queria, no honrado e no final. Ouvido meu retorcia a voz dele. Que mesmo, no fim de tanta exaltação, meu amor inchou, de empapar todas as folhagens, e eu ambicionando de pegar em Diadorim, carregar Diadorim nos meus braços, beijar, as muitas demais vezes, sempre. E tinha nôjo maior daquela Ana Duzuza, que vinha talvez separar a amizade da gente. Em mesmo eu quase reconheci um surdo prestígio de, sendo preciso, ir lá, por mim, reduzir a velha ― só não podia maltratar era Nhorinhá, que, ao tanto afeto, eu, eu bem-queria. Há-de que eu certo não regulasse, ôxe? Não sei, não sei. Não devia de estar relembrando isto, contando assim o sombrio das coisas. Lenga-lenga! Não devia de. O senhor é de fora, meu amigo mas meu estranho. Mas, talvez por isto mesmo. Falar com o estranho assim, que bem ouve e logo longe se vai embora, é um segundo proveito: faz do jeito que eu falasse mais mesmo comigo. Mire veja: o que é ruim, dentro da gente, a gente perverte sempre por arredar mais de si. Para isso é que o muito se fala?
Guimarães Rosa, in Grande sertão: veredas

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