O
homem disse o próprio nome e ficou me olhando atentamente. Como
alguém que tivesse atirado uma moeda num poço e esperasse o “plim”
no fundo. Repeti o nome algumas vezes e finalmente me lembrei. Plim.
Mas claro.
-
Comprei um livro seu não faz muito.
Ele
sorriu, mas apenas com a boca. Perguntou se podia entrar. Pedi para
ele esperar até que eu desengatasse as sete trancas da porta.
-
Você compreende - expliquei -, com essa onda de assassinatos...
Ele
compreendia. Estranhos assassinatos. Todas as vítimas eram
intelectuais. Ou pelo menos tinham livros em casa. Dezesseis vítimas
até então. Se soubesse que seria a décima sétima eu não teria me
apressado tanto com as correntes.
-
Você leu meu livro? - ele perguntou.
-
Li!
Essa
terrível necessidade de não magoar os outros. Principalmente os
autores novos.
-
Não leu - disse ele.
-
Li. Li!
Essa
obscena compulsão de ser amado.
-
Leu todo?
-
Todo.
Ele
ainda me olhava, desconfiado. Elaborei:
-
Aliás, peguei e não larguei mais até chegar ao fim. Ele ficou em
silêncio. Elaborei mais:
-
Depois li de novo.
Ele
nada. Exclamei:
-
Uma beleza!
-
Onde é que ele está?
Meu
Deus, ele queria a prova. Fiz um gesto vago na direção da estante.
Felizmente, nunca botei um livro fora na minha vida. Ainda tenho -
ainda tinha - o meu Livro do bebê. Com a impressão do meu pé
recém-nascido, pobre de mim. Venero livros.
Tenho
pilhas e pilhas de livros. Gosto do cheiro de livros novos e antigos.
Passo dias dentro de livrarias. Gosto de manusear livros, de sentir a
textura do papel com os dedos, de sentir seu volume na mão. Me ocupo
tanto de livros e quase não me sobra tempo para a leitura.
Ele
encontrou seu livro. Nós dois suspiramos, aliviados. Como é fácil
fazer a alegria dos outros, pensei. Com uma pequena mentira eu talvez
tivesse dado o empurrão definitivo numa vocação literária que, de
outra forma, se frustraria. Num transbordamento de caridade,
declarei:
-
Que livro! Puxa!
Mas
ele não me ouviu. Apertava o livro entre as mãos. Disse:
-
O último. Finalmente.
-
O quê?
Ele
começou a avançar na minha direção. Contou que a tiragem do livro
tinha sido pequena. Quinhentos exemplares. Sua mãe comprara 30 e
morrera antes de distribuir aos parentes. Ele tinha ficado com 453.
Dezessete cópias tinham acabado num sebo que, através dos anos,
vendera todos. Ele seguira a pista de 16 dos 17 compradores e os
estrangulara. Faltava o décimo sétimo.
-
Por quê? - gritei. E acrescentei, anacronicamente: - Homem de Deus?
No
livro tinha um cacófato horrível. Ele não podia suportar a ideia
de descobrirem seu cacófato.
-
Eu não notei! Eu não notei! - protestei.
Não
adiantou. Ninguém que tivesse lido o livro podia continuar vivo. Ele
queria deixar o mundo tão inédito quanto nascera.
-
Mas essas coisas não têm import... - comecei a dizer. Mas ele me
pegou e me estrangulou.
Bem
feito! Para eu aprender a não ser bem-educado. Meu consolo é que
depois ele descobriria que as páginas do livro não tinham sido
abertas e o remorso envenenaria suas noites.
Enfim.
É o que dá frequentar sebos.
Luís
Fernando Veríssimo, in As mentiras que os homens contam
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