domingo, 22 de maio de 2016

Os homens que descobriam cadeiras proibidas


Os homens não bateram, porque há muito naquela cidade, ou país, a polícia não precisava bater para entrar. Não traziam mandados judiciais, há muito os mandados tinham perdido a razão de ser. Não havia um estado de direito. Havia o estado, não o direito.
Os homens entraram, atravessaram a sala onde a família jantava, até então tranquilamente.
Inspeção de rotina, comunicou o chefe dos homens que tinham entrado.
Fiquem à vontade, disse o dono da casa, voltando para terminar a sopa, indiferente à súbita invasão. A indiferença significava apenas impotência.
Os homens vasculharam a sala, os quartos, o banheiro, o quarto das crianças, a cozinha, a área de serviço e o quarto da empregada. Quarto? Aqueles cubículos, senzalas que as imobiliárias fazem.
Voltaram da cozinha com uma cadeira branca de fórmica.
Vamos levar esta cadeira. Amanhã o senhor apareça para prestar depoimento.
Não sei como ela apareceu aí. Tínhamos vendido.
Não queremos saber. A cadeira estava na cozinha.
Talvez eles mesmos tenham trazido e colocado lá”, pensou o homem. Pensou, com medo que o outro percebesse o que ele estava pensando. Os pensamentos estavam proibidos há muito, principalmente pensamentos que colocassem em dúvida, ou em cheque, as ações dos homens.
Em que distrito?
Noventa e oito.
Está bem. Me dê a notificação.
Que notificação?
De que os senhores estiveram aqui.
Não estivemos aqui.
Não estiveram? Ainda estão.
Não estamos. O senhor nunca nos viu.
Então, que motivo terei para me apresentar amanhã no distrito?
O senhor se apresenta como voluntário. Levando a cadeira.
E se eu não me apresentar?
Voltaremos.
E então?
Ou melhor, viremos, mas não estaremos aqui. Não sei se compreende.
Compreendo bem. É assim: estou livre, mas não estou.
Perfeito. Se todos fossem como o senhor, a nossa atividade seria mais fácil. Não temos encontrado entendimento. Sabe o que me disse o homem do andar de baixo? Não tem lógica. Vocês não podem não estar, estando. Aí, eu disse: pois estou, e não estou.
Vamos ver se entendo melhor. O senhor fez, mas não fez.
Exatamente.
E se eu aplicasse o mesmo critério a esta cadeira? Ela existe, mas não existe. Não existindo, não estou incorrendo em nenhuma falta grave. Existe, mas não existe uma proibição para se usar cadeiras, não é?
O senhor quer me deixar confuso, mas não me deixa! Por isso me escolheram. Sou um homem de estudos, fui escolhido a dedo, eu era um dos melhores logísticos de minha faculdade. Este não é um trabalho simples.
Como funciona?
A proibição de usar cadeiras existe. As cadeiras é que não podem existir. O sim é para nós, o não para vocês. Somos o positivo, o povo, o negativo.
Quer dizer que não posso alegar que não estiveram aqui?
Não, porque entre nós sabemos que estivemos. Isso é o que conta.
Estou confuso.
E é para ficar. Não queremos nada claro.
Como podem agir assim?
Não agimos.
Acabam de agir.
Como agimos, se nem estivemos aqui?
Estou em frente ao quê?
A um homem que não existe.
O senhor é louco.
E o senhor um rebelde. Sabe que não tem o direito de fazer mais do que duas perguntas?
Não fiz nenhuma.
Fez, várias.
Fiz, mas não fiz. Fiz e não obtive resposta. Uma pergunta sem resposta não é pergunta, é uma simples frase sem sentido.
Chega. Amanhã no distrito noventa e oito.
E se não houver distrito noventa e oito?
Ignácio de Loyola Brandão, in Cadeiras proibidas

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