Os
homens não bateram, porque há muito naquela cidade, ou país, a
polícia não precisava bater para entrar. Não traziam mandados
judiciais, há muito os mandados tinham perdido a razão de ser. Não
havia um estado de direito. Havia o estado, não o direito.
Os
homens entraram, atravessaram a sala onde a família jantava, até
então tranquilamente.
–
Inspeção de rotina, comunicou o chefe
dos homens que tinham entrado.
–
Fiquem à vontade, disse o dono da casa,
voltando para terminar a sopa, indiferente à súbita invasão. A
indiferença significava apenas impotência.
Os
homens vasculharam a sala, os quartos, o banheiro, o quarto das
crianças, a cozinha, a área de serviço e o quarto da empregada.
Quarto? Aqueles cubículos, senzalas que as imobiliárias fazem.
Voltaram
da cozinha com uma cadeira branca de fórmica.
– Vamos
levar esta cadeira. Amanhã o senhor apareça para prestar
depoimento.
– Não
sei como ela apareceu aí. Tínhamos vendido.
– Não
queremos saber. A cadeira estava na cozinha.
“Talvez
eles mesmos tenham trazido e colocado lá”, pensou o homem. Pensou,
com medo que o outro percebesse o que ele estava pensando. Os
pensamentos estavam proibidos há muito, principalmente pensamentos
que colocassem em dúvida, ou em cheque, as ações dos homens.
– Em
que distrito?
–
Noventa e oito.
– Está
bem. Me dê a notificação.
– Que
notificação?
– De
que os senhores estiveram aqui.
– Não
estivemos aqui.
– Não
estiveram? Ainda estão.
– Não
estamos. O senhor nunca nos viu.
–
Então, que motivo terei para me
apresentar amanhã no distrito?
– O
senhor se apresenta como voluntário. Levando a cadeira.
– E
se eu não me apresentar?
–
Voltaremos.
– E
então?
– Ou
melhor, viremos, mas não estaremos aqui. Não sei se compreende.
–
Compreendo bem. É assim: estou livre,
mas não estou.
–
Perfeito. Se todos fossem como o senhor,
a nossa atividade seria mais fácil. Não temos encontrado
entendimento. Sabe o que me disse o homem do andar de baixo? Não tem
lógica. Vocês não podem não estar, estando. Aí, eu disse: pois
estou, e não estou.
– Vamos
ver se entendo melhor. O senhor fez, mas não fez.
–
Exatamente.
– E
se eu aplicasse o mesmo critério a esta cadeira? Ela existe, mas não
existe. Não existindo, não estou incorrendo em nenhuma falta grave.
Existe, mas não existe uma proibição para se usar cadeiras, não
é?
– O
senhor quer me deixar confuso, mas não me deixa! Por isso me
escolheram. Sou um homem de estudos, fui escolhido a dedo, eu era um
dos melhores logísticos de minha faculdade. Este não é um trabalho
simples.
– Como
funciona?
– A
proibição de usar cadeiras existe. As cadeiras é que não podem
existir. O sim é para nós, o não para vocês. Somos o positivo, o
povo, o negativo.
– Quer
dizer que não posso alegar que não estiveram aqui?
– Não,
porque entre nós sabemos que estivemos. Isso é o que conta.
– Estou
confuso.
– E
é para ficar. Não queremos nada claro.
– Como
podem agir assim?
– Não
agimos.
–
Acabam de agir.
– Como
agimos, se nem estivemos aqui?
– Estou
em frente ao quê?
– A
um homem que não existe.
– O
senhor é louco.
– E
o senhor um rebelde. Sabe que não tem o direito de fazer mais do que
duas perguntas?
– Não
fiz nenhuma.
– Fez,
várias.
– Fiz,
mas não fiz. Fiz e não obtive resposta. Uma pergunta sem resposta
não é pergunta, é uma simples frase sem sentido.
–
Chega. Amanhã no distrito noventa e
oito.
– E
se não houver distrito noventa e oito?
Ignácio
de Loyola Brandão, in Cadeiras
proibidas
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