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A
literatura não cabe nas engrenagens de um relógio. Talvez só de um
relógio ilógico, infiel a qualquer cronologia, que meça não o
marchar resoluto das horas, mas a instabilidade que elas, em vão,
tentam deter. Em 1968, o escritor Sérgio Sant’Anna trabalhava nos
contos de O sobrevivente, seu primeiro livro, que sairia no
ano seguinte. Enganam-se os que imaginam que, em consequência, esses
contos servem de espelho ao que se passou no Brasil daquele ano.
Quando pensa hoje em seu livro de estreia, Sérgio o vê retido em
uma “subjetividade pré-68”. Acredita, com razão, que a
atmosfera rebelde daquele ano heroico só apareceu, de fato, em Notas
de Manfredo Rangel, Repórter, seu segundo livro, de 1973.
Na
literatura de Sérgio Sant’Anna, as folhas do calendário se soltam
e se embaralham. O ano de 1968 só acontece em 1973. Eventos
políticos, movimentos de protesto, golpes militares sincronizam com
seu tempo e podem ser lidos através das lentes fixas da história. A
literatura, não. É imprudente empacotar escritores em escolas e
fases literárias. Eles se guiam por um relógio arredio, que
despreza a razão cronológica e que se movimenta não em linha reta,
mas aos saltos.
Em
uma das fotografias mais célebres da Passeata dos 100 Mil, realizada
no centro do Rio de Janeiro em junho de 1968, Clarice Lispector –
de óculos escuros, bolsa social e sapatos altos – aparece na
primeira fila, entre o pintor Carlos Scliar e o arquiteto Oscar
Niemeyer. Os menos informados talvez concluam que, naquela época,
Clarice era uma escritora engajada. No ano de 1968, no entanto,
Clarice dava o arremate em Uma aprendizagem, ou o livro
dos prazeres, o mais lírico de seus romances. Lóri, a
protagonista, não está em busca de seu tempo, mas em busca de si.
Seu inimigo não é o poder ou a ditadura militar, mas a culpa
ancestral que a impede de ser uma mulher. Em 1968, Clarice recebeu um
prêmio literário, oferecido pela Campanha Nacional da Criança. Ele
foi dado a O mistério do coelho pensante, seu primeiro livro
infantil, a história de um coelho que cheirava ideias.
Indiferente
aos clamores das ruas, o poeta João Cabral de Melo Neto – naquele
momento cônsul-geral do Brasil em Barcelona – publicou, em 1968, a
primeira edição de suas Obras completas. Cabral ainda
festejava o sucesso de A educação pela pedra, de 1966. Em um
de seus poemas, “Tecendo a manhã”, encontro dois versos que
denunciam o tempo não como um evento natural, mas como um acordo
arbitrário entre os homens. “Um galo sozinho não tece uma manhã:/
ele precisará sempre de outros galos.” O que rege o tempo não é
a sucessão das horas: é a invenção.
No
mesmo ano de 1968, o poeta Carlos Drummond de Andrade publicou
Boitempo. Folheio seu livro em busca de uma chave que me ajude
a pensar. Encontro-a logo na abertura, em versos fortes: “De cacos,
de buracos/ de hiatos e de vácuos/ de elipses, psius/ faz-se,
desfaz-se, faz-se/ uma incorpórea face,/ resumo de existido”.
Estimulado por Drummond, retrocedo no tapete do tempo e chego às
odes que outro grande poeta, Pablo Neruda, escreveu nos anos 1950.
Entre elas, encontro uma que é muito apropriada, a “Ode ao tempo”.
Ali, uma ideia, em particular, me interessa: a do tempo não como um
movimento externo, que nos cataloga e submete, mas como uma água
profunda que, diz Neruda, “caminha dentro de nós”. Em outras
palavras: relógios são imprestáveis, pois não medem o mundo
interior.
Salto
para as páginas de outros escritores. O ano de 1968 levou Hilda
Hilst, uma escritora sempre extemporânea, em direção a sentimentos
remotos e esquecidos. Em descompasso com seu tempo, Hilda mergulhava
em uma série de oito peças para teatro, que começou a escrever no
ano anterior. A primeira delas, A possessa, trata da loucura
como instrumento de saber. A última, O verdugo, encara o
poder não como um evento externo, que se deve enfrentar e combater,
mas como um carrasco íntimo, que o homem carrega dentro de si. No
mesmo ano de 1968, Lygia Fagundes Telles rascunha Antes do baile
verde, que sairia em 1970. No conto que empresta título ao
livro, uma jovem se prepara para um baile de Carnaval. Enquanto isso,
no quarto ao lado, seu pai agoniza. Em um mesmo instante, separados
por uma parede, o futuro e o passado se igualam. Rumores de 1968 só
ecoariam na obra de Lygia bem depois, com As meninas, romance
de 1973.
Já
não preciso de outras provas. O que tenho me basta: 1968 não está
na literatura de 1968. Talvez seja melhor aferrar-me a Borges, que
apreciava a lógica sinuosa dos antigos, segundo a qual o tempo é
circular e indiferente ao avanço das horas. Ou apegar-me às ideias
de um físico com porte de poeta como Ylia Prigogine, para quem
nenhum saber afirmou a equivalência “entre o que se faz e o que se
desfaz”. Na literatura não existem paralelos ou equivalências.
Por isso, se na perspectiva da história podemos dizer que 1968
inaugurou o novo na política, na literatura isso não é possível.
Escritores
portam um relógio emperrado, que se afasta de qualquer precisão –
um relógio com os ponteiros soltos. A literatura se produz, em
consequência, em hiatos. Ela se faz no silêncio que, diz João
Cabral em “Noturno telegráfico”, “nada parecia absorver, que
obedecia a outra ordem de criação”. Não é fácil aprender com
os escritores: eles nos transmitem não ensinamentos, mas enigmas.
Manipulam ponteiros que, em vez de girar e avançar, escapam e voam.
Um filósofo-poeta como Friedrich Nietzsche nos mostra que a arte da
linguagem se desenvolve não na disciplina e no acúmulo de
conhecimentos, mas na construção solitária de seus próprios
princípios.
Vêm-me
os versos perplexos de Hilda Hilst: “Sou eu essa mulher que anda
comigo?”. Pergunta que, transposta para a história literária,
talvez se formule assim: “Sou eu o escritor que deveria ser?”. Em
1968, ainda que estivessem nas ruas ou nas passeatas, os escritores
conservavam seu coração, como sempre fazem, em outro lugar. Anos?
Dias? Horas? Melhor ficar com Guimarães Rosa: “Eu utilizo cada
palavra como se ela acabasse de nascer”.
José
Castello, in Sábados inquietos
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