sábado, 7 de maio de 2016

Gato por gato

Só dois animais não se comoveram com a morte de Buda: a serpente e o gato. As repulsivas serpentes, criaturas geladas que rastejam pelas valas e porões, têm seu nome, há muito, ligado ao Mal. Já os gatos, seres encantadores, nos atordoam. Sua imagem inconstante se divide entre o afeto e a traição.
Já tive um gato. Não resisto ao lugar-comum: não sei se fui eu quem o tive ou ele que me teve. Essas ideias prontas reaparecem quando nos deparamos com o incompreensível. Nada explicam a respeito de meu gato. Não me ajudam, também, na leitura de Eu sou um gato, romance do japonês Natsume Soseki (tradução de Jefferson José Teixeira, Estação Liberdade).
Soseki (1867-1916) foi um homem nervoso e débil, que abandonou a universidade, e depois a família, para se esconder na literatura. Seus romances se distinguem pela delicadeza e astúcia psicológica. Em Eu sou um gato, ele se encarna em um felino para observar e desmascarar a empáfia do humano.
Uma lenda hebraica diz que o gato foi criado em plena arca porque Noé, desesperado, já não sabia como conter os ratos que a infestavam. Sempre que pensamos em um gato, pensamos logo em um rato. Ainda assim, a figura dos gatos se liga ao ócio e ao inútil. Os cachorros zelam pela casa, as galinhas põem ovos, as vacas produzem leite; já um gato não serve para nada. Autônomos e preguiçosos, eles vagueiam pelo mundo denunciando nossa incapacidade de simplesmente viver.
O gato sem nome que narra o romance de Natsume Soseki dedica sua vida a observar os humanos. Sua presença causa desconforto. O nome verdadeiro de Natsume (este é o sobrenome, que os japoneses invertem de posição) era Kinnosuke. Em 1887, ele adotou o pseudônimo de Soseki, que em chinês significa “incômodo”. Eu sou um gato é, portanto, um título escorregadio. O eu que se apresenta talvez fale do próprio escritor.
Sem um nome, para falar de si o gato de Soseki adota um pronome, “wagahai ”, que, no japonês do século XIX, era exclusivo de políticos e militares. Desafia, assim, seu dono, o professor Osan, um intelectual pedante que raramente o olha. “Meu amo costuma me julgar apenas um monte de pelos ambulantes”, diz. Quem vê o mesmo gato em todos os gatos não vê gato algum. Eu, que tive um gato, sei disso.
Gatos possuem 24 bigodes, que usam para medir as distâncias. À noite, enxergam seis vezes mais que os humanos. Contudo, durante o dia sua visão perde o foco. Sob a luz do sol, tudo o que veem é um borrão. Como as serpentes, movem-se nas sombras. Soseki ainda era um menino quando o romancista francês Jules Champfleury (1820-1889), pioneiro do Realismo, publicou seu belo Os gatos , que agora folheio.
Comprei-o em uma loja nas imediações do Louvre. A livreira, uma mulher careca e áspera, me advertiu: “Se o senhor não ama os gatos, não o leia, pois não o entenderá. Perco um freguês, mas o senhor não perde a noite”. Sempre amei os gatos, então comprei o livro.
Ler Soseki me traz de volta a Champfleury. Livros são trampolins que nos roubam o chão. Ao contrário dos nadadores, que se contentam com um único trampolim, leitores precisam de vários. Pulam de um para outro, experimentam voos desconhecidos, inventam novos saltos – a piscina é só um espelho no qual jamais mergulharão.
Diz Champfleury: “Creio que a linguagem dos gatos é uma língua, já que eles empregam sempre o mesmo som para exprimir a mesma coisa”. Salto de volta a Eu sou um gato. Já não me parece estranho que Soseki atribua pensamentos a seu gato. O escritor, muitas vezes, é só alguém que sabe ouvir.
Minha edição de Champfleury traz belas vinhetas do pintor japonês Hok’sai, outro realista. Seus desenhos devolvem os gatos à esfera da natureza. Mas, descartadas as superstições da veterinária, o que há de natural em um gato? Feridos pela linguagem, em pleno sangue da língua, a natureza já não lhes basta.
O gato sem nome de Soseki bem merece o pseudônimo que o autor adotou: incômodo. O professor Osan o despreza, mas seus discípulos o valorizam. Entre os gatos, ele sim é chamado de “professor”. Assim o trata a gata Mikeko, criada por uma tocadora de koto como se fosse humana. Quando falam dela, não parecem se referir a um bicho. “Por um lado senti certa inveja”, o gato sem nome admite, “mas por outro não deixei de sentir certa alegria”. Alegria, talvez, por se ver vingado. É raso o abismo que separa gatos e homens.
Mikeko adoece e morre. Com o coração aos trancos, o gato sem nome ouve um comentário cruel: “Se em lugar de Mikeko aquele gato vira-lata da casa do professor morresse, teria sido perfeito”. Se não humanizamos os gatos, os reduzimos a perseguidores de ratos. Mas também o gato sem nome já não vê os gatos como seres naturais. “Com a mesma empáfia dos humanos, sinto vontade de criticar suas ideias e comportamentos”, diz.
Gatos não são ratos, que fogem e se escondem. Quando perseguidos pelo homem, ao contrário, eles o fitam. É na borra desse olhar que somos fisgados. Também a figura incômoda de Natsume Soseki se dilui na imagem de seu gato. Não posso negar: quando olho a fotografia de meu falecido gato, num tremor, confesso que me vejo.
Ao fim do romance, já casado, o professor Osan se assemelha a seu gato. O longo despertar diante de uma esposa impaciente, no capítulo 10, resume essa metamorfose. O gato verdadeiro o observa. “Meu amo pertence à categoria dos imprestáveis”, ele constata. “Por ser imprestável, não é valorizado. Como não é valorizado, não há por que esconder sua frieza interior.” Conclui o gato que a indiferença faz parte da essência humana e que os homens honestos – como os gatos com sua negligência – não se esforçam para escondê-la.
O círculo se fecha, homens são gatos. Saio em busca dos versos que Charles Baudelaire lhes dedica: “Nos teus belos olhos de ágata e aço/ deixa-me aos poucos mergulhar”. Talvez não sejam os gatos que se desviem e se escondam. Talvez sejamos nós, que, por não conseguir fitá-los, sem coragem para mergulhar em seu interior, nos retraímos. Imitamos os bichos e nos escondemos. Onde vemos um homem, eles veem outro gato.
José Castello, in Sábados inquietos

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