Bernardo
Soares escreveu que nosso problema está em nossa incapacidade de
desembarcar de nós mesmos. É inútil ir até a China se não saímos
da bolha onde vivemos. Tudo o que virmos e pensarmos nessa viagem
será uma repetição da nossa mesmice. Isso vale para viagens. E
vale também para a leitura. Porque toda leitura é uma viagem por um
mundo desconhecido. Não, isso que escrevi não está certo. Há
livros que não nos levam a viajar por mundos desconhecidos. Eles
apenas repetem a nossa mesmice. Por isso são de leitura fácil. Há
alguns anos, quando estive preso numa cadeira por causa de uma
operação de hérnia de disco, pus-me a ler uma série de livros que
tinham estado à espera, numa prateleira. Mas eles davam canseira na
cabeça de um homem que estava doente. Quem está doente não quer
viajar. Mudei-me então para os policiais da Agatha Christie. Leitura
para passar o tempo, porque não era preciso pensar. Todos eles são
iguais. E eu ficava no meu mundinho. Para se entender um livro de
outro mundo, a primeira condição é sair do nosso mundo. Isso exige
uma decisão preliminar: “Vou, provisoriamente, num jogo de faz de
conta, parar de ter minhas ideias. Vou desembarcar do meu mundo. Vou
entrar no mundo do autor. Vou aprender a sua língua...”. Se eu não
fizer isso não terei condições de entendê-lo, se for o caso,
ainda que para discordar dele honestamente. Se eu parto do
pressuposto de que o autor só diz besteiras eu só lerei besteiras –
as que estavam dentro de mim. Lembro-me dos meus tempos de
universidade: se alguém ia ler Max Weber, ia sabendo que ele era o
“ideólogo da burguesia”. Se se ia ler Durkheim, sabia-se de
antemão que ele era um “funcionalista conservador”. Para se ler
Nietzsche é preciso antes ficar nu e tomar um banho. Se vocês
quiserem ler um exemplo de absoluta incompreensão de Nietzsche leiam
o que Coplestone, padre jesuíta, disse dele na sua história da
filosofia.
Rubem
Alves, in Ostra feliz não faz pérola
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