quarta-feira, 25 de maio de 2016

Desembarcar

Bernardo Soares escreveu que nosso problema está em nossa incapacidade de desembarcar de nós mesmos. É inútil ir até a China se não saímos da bolha onde vivemos. Tudo o que virmos e pensarmos nessa viagem será uma repetição da nossa mesmice. Isso vale para viagens. E vale também para a leitura. Porque toda leitura é uma viagem por um mundo desconhecido. Não, isso que escrevi não está certo. Há livros que não nos levam a viajar por mundos desconhecidos. Eles apenas repetem a nossa mesmice. Por isso são de leitura fácil. Há alguns anos, quando estive preso numa cadeira por causa de uma operação de hérnia de disco, pus-me a ler uma série de livros que tinham estado à espera, numa prateleira. Mas eles davam canseira na cabeça de um homem que estava doente. Quem está doente não quer viajar. Mudei-me então para os policiais da Agatha Christie. Leitura para passar o tempo, porque não era preciso pensar. Todos eles são iguais. E eu ficava no meu mundinho. Para se entender um livro de outro mundo, a primeira condição é sair do nosso mundo. Isso exige uma decisão preliminar: “Vou, provisoriamente, num jogo de faz de conta, parar de ter minhas ideias. Vou desembarcar do meu mundo. Vou entrar no mundo do autor. Vou aprender a sua língua...”. Se eu não fizer isso não terei condições de entendê-lo, se for o caso, ainda que para discordar dele honestamente. Se eu parto do pressuposto de que o autor só diz besteiras eu só lerei besteiras – as que estavam dentro de mim. Lembro-me dos meus tempos de universidade: se alguém ia ler Max Weber, ia sabendo que ele era o “ideólogo da burguesia”. Se se ia ler Durkheim, sabia-se de antemão que ele era um “funcionalista conservador”. Para se ler Nietzsche é preciso antes ficar nu e tomar um banho. Se vocês quiserem ler um exemplo de absoluta incompreensão de Nietzsche leiam o que Coplestone, padre jesuíta, disse dele na sua história da filosofia.
Rubem Alves, in Ostra feliz não faz pérola

Nenhum comentário:

Postar um comentário