Clarice
Lispector dizia: “Não sou eu quem escrevo, são meus livros que me
escrevem”. Falava, assim, da posição dupla do escritor, que se
resume em uma ideia: a de sujeito. Sujeito é aquele que age – o
sujeito de uma sentença, por exemplo. Mas é também, e
paradoxalmente, aquele que está submisso a algo. Isto é, preso
(sujeito) a forças que lhe escapam, que o submetem e que nele se
inscrevem. Ou melhor: que nele se escrevem. A palavra sujeito vem do
latim subjectu, o que significa “posto debaixo”.
Arrisco-me
a seguir a pista de Clarice e dizer: “Não é o leitor quem lê um
livro, é o livro que o lê”. E, claro, falo da literatura, e não
dos textos científicos, compêndios técnicos ou escritos sagrados.
Ao contrário destes, que se baseiam em conceitos, aferições e
dogmas, a literatura se define pela liberdade e se volta para o
enigma. Mira o que não se pode ver. E, por isso, “sofre” do que
tenta ver.
Mas,
se a literatura encara o enigma, e se o escritor (penso agora com
Julio Cortázar) é aquele que rompe as barreiras da realidade, se é
assim, que papel resta ao crítico literário? Sua tarefa não se
reduz à crítica de conceitos, à aferição de estratégias e à
contestação de dogmas. Muito menos à avaliação do bem escrito e
do bom gosto. O crítico, mesmo o mais bem equipado dos teóricos,
mesmo o mais bem treinado especialista, é antes de tudo um leitor.
E, como qualquer leitor, encontra-se em posição de espanto e de
desamparo. Está submetido (sujeito) ao golpe da leitura.
Hoje
de manhã, em Maceió, regi uma oficina de leitura. À saída, em voz
trêmula como se me revelasse um segredo, uma mulher me disse:
“Confesso que estou tonta. Mas eu sei: isso quer dizer que, de
fato, eu li Clarice”. Lemos juntos, linha a linha, palavra a
palavra, “O ovo e a galinha”. Não foi fácil. Perdi a conta das
vezes que já li o conto de Clarice, mas voltei, eu também, a me
atordoar. Eu, crítico literário? Em um grupo de vinte pessoas, eu
era só mais um – mais um a sofrer dos efeitos da literatura.
Por
certo, “O ovo e a galinha” que li não é o mesmo que minha aluna
leu. O que li em Maceió esta manhã não é o mesmo que li, há seis
meses, em um seminário em Curitiba. Cada vez que o leio, existe um
“O ovo e a galinha” diferente. E também eu sou outro leitor. O
que me autoriza, então, a ostentar minha leitura como superior? Toda
leitura é íntima, subjetiva, secreta – e um crítico não está
livre disso. Não serão as armas da teoria nem os escudos reluzentes
dos títulos que irão poupá-lo do choque que é ler. Se eles o
salvam, é porque ele não leu. Sem entrega, não só não há
literatura: não há leitor.
Escrevo
isso que se chama de crítica literária, mas não me considero um
especialista. Embora, desde menino, desde as primeiras leituras de
Bandeira, de Vinicius, de Defoe, de Lobato, desde então, eu “sofra”
de literatura – como se sofre de uma alergia ou de uma fobia. Sou
um amador: vejo-me não só como um não profissional (amador),
embora ganhe meu pão do que leio e escrevo, mas também como alguém
que ama (amador), que sofre de uma paixão e a exercita. É desse
lugar incerto que leio; é dessa posição movediça que escrevo o
que, por falta de outra palavra, chamam (pois eu mesmo não chamo) de
crítica literária.
Ler
é estabelecer laços secretos com uma escrita. É fazer o que
Cortázar chamava de “conexões inexplicáveis” com as palavras.
Dizia ele que a literatura é um tipo de possessão. Afirmava, por
exemplo, ter escrito seu O jogo da amarelinha fora de si. As forças
lhe fugiam. “Minha mulher me dava colo, me levava para tomar um
pouco de sopa”, relatou. Ora, essas tensões extremas não se
alijam de um texto. Se o leitor pragmático e profissional as
descarta, joga fora o coração da escrita.
Escrever
é perfurar a realidade. Ler é lançar-se nesse rombo, deixar-se
cair (sucumbir) na grande aventura da escrita. Antes de ser uma
técnica ou um saber, a literatura é aventura. O leitor é aquele
que se aventura no coração do outro. Por isso, diz a crítica
canadense Claire Varin, a leitura dos grandes escritores é uma
espécie de telepatia. Uma comunicação à distância entre dois
espantos. Diz Claire que, quando lemos Clarice, ou Cortázar, ou
Pessoa, ou bem “somos” esses escritores, ou não lemos coisa
alguma.
É
verdade: o escritor é também aquele que inventa uma ordem, na
esperança de aplacar o caos da existência. João Cabral se
interessava por lâminas e por facas: para ele, escrever era talhar,
na esperança de chegar ao osso das coisas. Dizia: “Escrevo porque
tenho que me agarrar a uma ordem, já que minha cabeça é um caos”.
Todo escritor inventa um método, o que não o livra do fracasso. Diz
Garcia-Roza: “Uma ficção não é um problema, é um enigma. Um
problema pede uma solução, um enigma não tem solução”. Clarice
sugeriu que o escritor é aquele que lança a palavra como isca, na
esperança de capturar o real. Mas, no fim, ele fica mesmo (e só)
com as palavras.
Criticar,
em consequência, não pode ser fechar ou reduzir. Se a crítica é
alguma coisa, ela é a contemplação do enigma. O crítico deve se
expor ao grande clarão da leitura. Eu sei: é preciso coragem. Os
sistemas, diz Ernesto Sabato, são sempre “sistemas de
tranquilidade”, que nos consolam, criando a ilusão de uma
resposta. Mas em literatura não existe paz nem existem respostas. A
literatura é o mundo das perguntas. A um crítico só resta
perguntar também – ou estará em outro mundo.
Se
é verdade, como sugere Cabral em “Uma faca só lâmina”, que o
poeta é aquele que, através do corte, trabalha com a ausência e o
deserto; se é verdade, como diz Clarice em “O ovo e a galinha”,
que o escritor é uma espécie de agente secreto (secreto inclusive
para si mesmo) que age em nome de uma esfera desconhecida; se isso é
verdade, então o que resta à crítica senão sincronizar com esse
desamparo e aceitar a aventura? Caminhar pelas incertezas do deserto,
expor-se à luz atordoante das palavras, engajar-se em uma missão
desconhecida: só isso pode ser a crítica. Ou ela não passará de
uma fuga.
José
Castello, in Sábados inquietos
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