sábado, 28 de maio de 2016

A crítica como aventura

Clarice Lispector dizia: “Não sou eu quem escrevo, são meus livros que me escrevem”. Falava, assim, da posição dupla do escritor, que se resume em uma ideia: a de sujeito. Sujeito é aquele que age – o sujeito de uma sentença, por exemplo. Mas é também, e paradoxalmente, aquele que está submisso a algo. Isto é, preso (sujeito) a forças que lhe escapam, que o submetem e que nele se inscrevem. Ou melhor: que nele se escrevem. A palavra sujeito vem do latim subjectu, o que significa “posto debaixo”.
Arrisco-me a seguir a pista de Clarice e dizer: “Não é o leitor quem lê um livro, é o livro que o lê”. E, claro, falo da literatura, e não dos textos científicos, compêndios técnicos ou escritos sagrados. Ao contrário destes, que se baseiam em conceitos, aferições e dogmas, a literatura se define pela liberdade e se volta para o enigma. Mira o que não se pode ver. E, por isso, “sofre” do que tenta ver.
Mas, se a literatura encara o enigma, e se o escritor (penso agora com Julio Cortázar) é aquele que rompe as barreiras da realidade, se é assim, que papel resta ao crítico literário? Sua tarefa não se reduz à crítica de conceitos, à aferição de estratégias e à contestação de dogmas. Muito menos à avaliação do bem escrito e do bom gosto. O crítico, mesmo o mais bem equipado dos teóricos, mesmo o mais bem treinado especialista, é antes de tudo um leitor. E, como qualquer leitor, encontra-se em posição de espanto e de desamparo. Está submetido (sujeito) ao golpe da leitura.
Hoje de manhã, em Maceió, regi uma oficina de leitura. À saída, em voz trêmula como se me revelasse um segredo, uma mulher me disse: “Confesso que estou tonta. Mas eu sei: isso quer dizer que, de fato, eu li Clarice”. Lemos juntos, linha a linha, palavra a palavra, “O ovo e a galinha”. Não foi fácil. Perdi a conta das vezes que já li o conto de Clarice, mas voltei, eu também, a me atordoar. Eu, crítico literário? Em um grupo de vinte pessoas, eu era só mais um – mais um a sofrer dos efeitos da literatura.
Por certo, “O ovo e a galinha” que li não é o mesmo que minha aluna leu. O que li em Maceió esta manhã não é o mesmo que li, há seis meses, em um seminário em Curitiba. Cada vez que o leio, existe um “O ovo e a galinha” diferente. E também eu sou outro leitor. O que me autoriza, então, a ostentar minha leitura como superior? Toda leitura é íntima, subjetiva, secreta – e um crítico não está livre disso. Não serão as armas da teoria nem os escudos reluzentes dos títulos que irão poupá-lo do choque que é ler. Se eles o salvam, é porque ele não leu. Sem entrega, não só não há literatura: não há leitor.
Escrevo isso que se chama de crítica literária, mas não me considero um especialista. Embora, desde menino, desde as primeiras leituras de Bandeira, de Vinicius, de Defoe, de Lobato, desde então, eu “sofra” de literatura – como se sofre de uma alergia ou de uma fobia. Sou um amador: vejo-me não só como um não profissional (amador), embora ganhe meu pão do que leio e escrevo, mas também como alguém que ama (amador), que sofre de uma paixão e a exercita. É desse lugar incerto que leio; é dessa posição movediça que escrevo o que, por falta de outra palavra, chamam (pois eu mesmo não chamo) de crítica literária.
Ler é estabelecer laços secretos com uma escrita. É fazer o que Cortázar chamava de “conexões inexplicáveis” com as palavras. Dizia ele que a literatura é um tipo de possessão. Afirmava, por exemplo, ter escrito seu O jogo da amarelinha fora de si. As forças lhe fugiam. “Minha mulher me dava colo, me levava para tomar um pouco de sopa”, relatou. Ora, essas tensões extremas não se alijam de um texto. Se o leitor pragmático e profissional as descarta, joga fora o coração da escrita.
Escrever é perfurar a realidade. Ler é lançar-se nesse rombo, deixar-se cair (sucumbir) na grande aventura da escrita. Antes de ser uma técnica ou um saber, a literatura é aventura. O leitor é aquele que se aventura no coração do outro. Por isso, diz a crítica canadense Claire Varin, a leitura dos grandes escritores é uma espécie de telepatia. Uma comunicação à distância entre dois espantos. Diz Claire que, quando lemos Clarice, ou Cortázar, ou Pessoa, ou bem “somos” esses escritores, ou não lemos coisa alguma.
É verdade: o escritor é também aquele que inventa uma ordem, na esperança de aplacar o caos da existência. João Cabral se interessava por lâminas e por facas: para ele, escrever era talhar, na esperança de chegar ao osso das coisas. Dizia: “Escrevo porque tenho que me agarrar a uma ordem, já que minha cabeça é um caos”. Todo escritor inventa um método, o que não o livra do fracasso. Diz Garcia-Roza: “Uma ficção não é um problema, é um enigma. Um problema pede uma solução, um enigma não tem solução”. Clarice sugeriu que o escritor é aquele que lança a palavra como isca, na esperança de capturar o real. Mas, no fim, ele fica mesmo (e só) com as palavras.
Criticar, em consequência, não pode ser fechar ou reduzir. Se a crítica é alguma coisa, ela é a contemplação do enigma. O crítico deve se expor ao grande clarão da leitura. Eu sei: é preciso coragem. Os sistemas, diz Ernesto Sabato, são sempre “sistemas de tranquilidade”, que nos consolam, criando a ilusão de uma resposta. Mas em literatura não existe paz nem existem respostas. A literatura é o mundo das perguntas. A um crítico só resta perguntar também – ou estará em outro mundo.
Se é verdade, como sugere Cabral em “Uma faca só lâmina”, que o poeta é aquele que, através do corte, trabalha com a ausência e o deserto; se é verdade, como diz Clarice em “O ovo e a galinha”, que o escritor é uma espécie de agente secreto (secreto inclusive para si mesmo) que age em nome de uma esfera desconhecida; se isso é verdade, então o que resta à crítica senão sincronizar com esse desamparo e aceitar a aventura? Caminhar pelas incertezas do deserto, expor-se à luz atordoante das palavras, engajar-se em uma missão desconhecida: só isso pode ser a crítica. Ou ela não passará de uma fuga.
José Castello, in Sábados inquietos

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