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Como
um cavaleiro colocando a armadura: era assim que ele sentia cada vez
que se fardava para o futebol. Um pouco de exagero, claro: afinal,
tratava-se de camiseta, não de couraça, e o jogo, bem, o jogo era
uma pelada de sábado à tarde, disputada com muita energia mas pouca
técnica por um grupo de velhos amigos.
E
contudo sentia-se como um cavaleiro preparando-se para a batalha.
Porque era um pouco batalha, sim; não ressoavam no campo gritos de
guerra nem os uivos dos feridos, mas era um pouco batalha. Sobretudo
naquele sábado. Ele não saberia dizer qual a razão, mas sentia que
naquele sábado sentia algo muito importante aconteceria. Tentou
disfarçar a ansiedade gracejando com os amigos, como de hábito, mas
não foi sem inquietação que pisou o gramado.
E
tal logo o juiz - que depois estaria com eles no bar, tomando
cervejas e comentando os lances mais engraçados do jogo - tão logo
o juiz trilou o apito, ele se deu conta do que estava acontecendo.
O
centroavante adversário.
Era
a primeira vez que estava jogando. O que também tinha um
significado: depois de todos aqueles anos, haviam resolvido que
estava na hora de convidar outros parceiros, gente mais jovem.
Afinal, estavam ficando velhos, breve surgiram lacunas nos times, e
era preciso manter aquilo que já se tornara uma tradição, o jogo
de sábado.
O
centroavante adversário era um rapaz jovem. E era um grande jogador.
Isto ficou claro desde os instantes iniciais, pela insolente
facilidade com que se apossava da bola, com que driblava os
adversários, com que deslocava pelo gramado. Perto dele, os outros
jogadores - homens de meia-idade, barrigudos, desajeitados, eram
figuras lamentáveis.
Aquele
centroavante decidira a partida. Vamos perder, pensou, com um aperto
no coração. Não suportava perder; não a partida de futebol do
sábado. Já lhe bastavam as frustrações do cotidiano, a
mediocridade do trabalho na repartição, as recriminações da
mulher. No sábado, custasse o que custasse, tinha de ganhar. E o
centroavante - que o destino colocara no outro time - não o
impediria. Isto deixaria claro. E quanto antes, melhor.
Não
demorou muito o rapaz recebeu uma bola, avançou pelo centro do
gramado, passou por um, passou por dois, e de repente estava ali
invadindo a grande área, pronto a marcar o gol. Não passará, ele
rosnou e, cerrando os dentes, partiu ao encontro do inimigo, como um
cavaleiro em plena batalha. O rapaz vinha vindo, e claramente
passaria por ele se deixasse. Não deixou. Mandou o pé, que não
acertou a bola, porque não era para acertar a bola; era para acertar
a canela do adversário.
Que,
com um grito, caiu.
Por
um instante ficaram todos imóveis, perplexos. Depois, correram
todos. E ali estava o jovem, retorcendo-se de dor. Ele se ajoelhou ao
lado do rapaz:
–
Desculpe, meu filho - disse, confuso –
eu não quis machucar você.
O
rapaz tentou esboçar um sorriso.
– Eu
sei. Você é ruim mesmo. Se soubesse que tinha um pai tão ruim não
teria vindo jogar.
Com
a ajuda dos outros, que agora riam e debochavam, o centroavante
pôs-se de pé.
– Eu
acho – disse o juiz– que vou ter de dar pênalti.
Com
o que todos concordavam: agressão de pai era caso, no mínimo, de
pênalti. Talvez até de expulsão. O próprio rapaz cobrou a
penalidade máxima. Com sucesso, naturalmente: afinal, era um grande
jogador, como o pai, de olhos úmidos, teve de reconhecer. Com
melancolia, mas sem nenhum rancor; se tinha de perder – e tinha de
perder – era preferível que perdesse para o filho. E se precisasse
ajudá-lo com um pênalti - bem, por que não?
Moacyr
Scliar, originalmente publicado
no Jornal Zero Hora
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