quarta-feira, 13 de abril de 2016

Os meninos

O menino insinuou-se pela horta em pontinha de pé. Emudeciam as cigarras à sua passagem, depois voltavam a rechinar. Agachou-se entre as folhas de couve, depositou no chão a latinha de água. Viera desde o riacho e, cheia como estava, sem derramar uma gota.
Sentado, modelou pelotas para o estilingue. Molhando um bocado de barro preto, rolava-o na palma da mão. Uma cigarra ali perto, iludida com o silêncio e alucinada pelo brilho do caco de vidro, chiou bem alto. Ele não ouvia; girando as bolotas, dispostas uma ao lado da outra, pensava em Estacha.
Havia cinco dias na casa, único vestido desbotado e quase transparente de tão gasto.
Magra e pálida, surpreendeu-a devorando o resto dos pratos. Antes de dormir, lavava os pés, uma crosta escura no calcanhar, os pés incansáveis que o menino seguia por todos os caminhos. Cada noite ela enxaguava o vestido, pendurado a secar no arame sobre o fogão. Silêncio na casa, o menino saltava da cama, ia esfregar a cabeça no vestido amarelo.
Pela manhã ela recolhia braçadas de lenha, empilhava-a ao lado do fogão e batia o pó da roupa: não saíam as duas pintas pretas do peito. Ao ver o menino, prendia o vestido com as mãos, apertava os joelhos:
Conto para tua mãe. Olhe que eu conto.
Não contou que, lavando roupa no riacho, ele a espreitava. Escondido entre as moitas:
Psiu, psiu...” Atirando uma das trancas para trás, sempre a malhar o pano na tábua, olhava-o sem escândalo, quem sabe um pouco deslumbrada.
Na volta, a capoeira com seu bosque escuro. Sabia que era perseguida e vinha a correr, a bacia de roupa no braço.
Quer morango? — o menino de pernas abertas cortou-lhe o caminho.
Está verde.
Dois madurinhos — ofereceu a mão fechada. — Quer?
Mentira. A mão vazia.
Estendeu a mão e, para a acariciar, abriu os dedos.
Conto para tua mãe.
Largar a bacia e sair correndo? Chegasse sem ela, a mãe do menino havia de mandá-la embora. Daí ele viu o caco de vidro.
Me pegue, eu te corto!
Foi erguer-lhe o vestido, ela o atingiu com o vidro. Não doeu, uma coceguinha no dedo ferido.
Viu o que fez? — ele se lamentou, o sangue era doce e quente.
Me deixa que tua mãe me surra.
O pedaço de vidro caído entre os dois. Ela começou a chorar — as lágrimas rolavam dos olhos iguais a pingos de chuva na vidraça.
Polaca é fria! — tirou o dedo da boca para a xingar. Ela se afastava sem olhar para trás, curva da do outro lado da bacia. — Polaca fria!
Naquela manhã, esperando por ela na horta, onde viria colher verdura para o almoço, o menino rematou as pelotas. Enquanto secavam ao sol, deitou-se de costas, mãos na nuca — ao arrepio do vento faiscavam as folhas da laranjeira. Pertinho do nariz fervia uma tropa de formigas, lavadeiras de trouxa na cabeça.
Virou as bolotas, algumas tinham rachado e jogou-as fora. Ouviu a cancela que rangia.
Estacha a deixava aberta... Devagar espiava os canteiros, tão aflita que esmagou batalhão de formigas. O menino agarrou o pé, torcia a perna e ela gemeu de dor. Caules de couve partiam-se com estrondo quando eles rolavam por cima. Ela, a mais forte, deixou cair os tiraços — quatro pés descalços espalharam as bolinhas de barro.
Jaziam lado a lado, cuidosos de não se tocarem, olhos perdidos no manso embalo das nuvens. O menino sentou-se primeiro, a guardar as pelotas no saquinho de pano. Estacha ergueu-se, deu-lhe as costas, bateu o pó do vestido. Ao chegar à cancela, voltou para colher a verdura. Ele a olhou, ela não. Tão vagarosa, as trancas nem buliam no ombro. As formigas refizeram a correição. Ali perto ziziou a cigarra.
Dalton Trevisan, in Novelas nada exemplares

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