sexta-feira, 1 de abril de 2016

On the Road – Pé na estrada (trecho inicial)

Encontrei Dean pela primeira vez pouco depois que minha mulher e eu nos separamos. Eu tinha acabado de me livrar de uma doença séria, da qual nem vale a pena falar, exceto que teve algo a ver com a maldita separação e com o meu sentimento de que tudo estava morto. Com a vinda de Dean Moriarty começa a parte de minha vida que pode ser chamada de vida na estrada. Antes disso, eu tinha sonhado muitas vezes em ir para o oeste conhecer o país, mas eram apenas planos vagos, e eu nunca partia de verdade. Dean é o cara perfeito para a estrada, simplesmente porque nasceu na estrada quando seus pais estavam passando por Salt Lake City em 1926, a caminho de Los Angeles, num calhambeque caindo aos pedaços. As primeiras notícias sobre ele chegaram através de Chad King, que havia me mostrado algumas de suas cartas escritas num reformatório do Novo México. Fiquei ligadíssimo nas cartas, por causa do jeito ingênuo e singelo com que elas pediam a Chad para lhe ensinar tudo sobre Nietzsche e todos os demais assuntos filosóficos que Chad conhecia. Certa vez Carlo e eu falamos a respeito das cartas e nos perguntamos se iríamos algum dia conhecer o estranho Dean Moriarty. Tudo isso foi há muito tempo, quando Dean não era do jeito que ele é hoje — quando era um delinqüente juvenil envolto em mistério. De repente, ficamos sabendo que Dean tinha se mandado do reformatório e estava vindo para Nova York; soubemos também que ele tinha acabado de casar com uma garota chamada Marylou.
Um dia, eu vagabundeava pelo campus, quando Chad e Tim Gray me disseram que Dean estava hospedado numa daquelas espeluncas sem água quente no East Harlem, o Harlem espanhol. Tinha chegado a Nova York pela primeira vez na noite anterior, com sua gostosa gata, a linda Marylou; eles saltaram do ônibus Greyhound na 50 th Street, dobraram a esquina procurando um lugar onde comer e deram de cara com a Hector’s — e desde então a cafeteria Hector’s se transformou num grande símbolo de Nova York para Dean. Eles gastaram seu dinheiro em bombas de creme e em bolos cristalizados enormes e deliciosos. O tempo inteiro Dean estava dizendo para Marylou coisas do tipo: — Agora, garota, aqui estamos nós em Nova York, e mesmo que eu não tenha contado tudo o que passava pela minha cabeça quando a gente atravessou Missouri, principalmente na hora em que passamos pelo reformatório de Booneville, que me lembrou do meu problema na prisão, temos mais é que esquecer todos os detalhes ainda obscuros da nossa transa e, de uma vez por todas, começar a pensar em planos específicos de trabalho... —, e assim por diante, do jeito que ele falava naquele tempo.
Fui à tal espelunca com a rapaziada, e Dean abriu a porta de cueca. Marylou estava saltando do sofá, Dean tinha expulsado o ocupante do apartamento para a cozinha, provavelmente para que fizesse café, enquanto ele continuava se dedicando a questões amorosas, já que, para ele, o sexo era a primeira e única coisa sagrada e realmente importante na vida, ainda que, para sobreviver, ele tivesse que suar, blasfemar e tudo o mais. Dava para sacar isso na maneira com que ele parava balançando a cabeça, sempre olhando para baixo, assentindo como um boxeador novato que recebe instruções, para fazer você pensar que ele estava escutando cada palavra, cuspindo milhões de “sims” e “claros” o tempo inteiro. A primeira impressão que tive de Dean foi a de um Gene Autry mais moço — maneiro, esguio, olhos azuis, com um sotaque típico de Oklahoma —, um herói de suíças do lado nevado do oeste. Na verdade ele andara trabalhando num rancho, o de Ed Hall, no Colorado, antes de casar com Marylou e se mandar para o leste. Marylou era uma loira linda, com imensos cabelos encaracolados num mar de trancas douradas. E ela ficava ali sentada, na beira do sofá, com as mãos apoiadas sobre as coxas e seus olhos caipiras azul-esfumaçados fixos numa expressão assustada porque, no fim das contas, ali estava ela, num cinzento e diabólico apartamento de Nova York, justamente como ouvira falar lá no oeste, e apenas aguardava, longilínea e magricela como uma daquelas mulheres surrealistas das pinturas de Modigliani num quarto sem graça. Só que, além de gostosa, era profundamente estúpida, e capaz de fazer coisas horríveis. Aquela noite todos nós bebemos cerveja e jogamos braço-de-ferro e conversamos até o amanhecer e, de manhã, enquanto fumávamos baganas dos cinzeiros na luz cinzenta de um dia nublado, Dean se levantou nervosamente, caminhou em círculos, compenetrado, e decidiu que a melhor coisa a fazer era mandar Marylou preparar o café e varrer o chão: — É o seguinte, garota: temos que ir ao que interessa, porque, no que vacilou, a gente fica flutuando e nossos planos jamais se concretizarão. — Aí, eu caí fora.
Jack Kerouac, in On the Road – Pé na estrada

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