Em
meio aos sons estridentes do Carnaval, uma pergunta longínqua,
formulada por Fiodor Dostoiévski no ano de 1864, ressurge em minha
mente: “Não será melhor dar um pontapé em toda essa sensatez,
para que possamos mais uma vez viver de acordo com nossa estúpida
vontade?”.
Tento
afastá-la, pois parece inconveniente na mesa de bar que divido com
amigos. Passaram-se 144 anos desde a publicação das Memórias do
subsolo, livro que acabei de reler, com tradução de Boris
Schnaiderman para a editora 34. Mas a pergunta insiste. No mais
improvável dos cenários – um bar de Copacabana, em um fim de
tarde –, quieto em meu canto, ela se repete.
Na
mesma noite, busco em minha mala as Memórias, o livro em que
Dostoiévski, depois de romances menores, se torna, enfim,
Dostoiévski. A frase estará mesmo ali ou eu, embriagado pelo
Carnaval e alguns chopes, a inventei?
Faço
uma busca aos atropelos até que, na página 38, esbarro com a
pergunta, que é um pouco mais longa, mas cuja essência minha
memória preservou. No bar, enquanto eu a ruminava, uma amiga,
preocupada, me perguntou se eu estava bem, se não preferia voltar
para casa. Limitei-me a sorrir. Voltar para casa é fácil, pensei. O
difícil é voltar-se para dentro quando todos (e isto define o
Carnaval, isto é sua beleza) se voltam para fora.
Frases,
porém, grudam em nossa mente. Só nos livramos delas quando as
enfrentamos. Ou, como propõe Dostoiévski, quando as escrevemos. Ele
se pergunta: “Para que, em suma, quero escrever?”. E logo depois
responde: “Não sei por quê, mas acredito que, se eu a anotar, há
de me deixar em paz”.
Escritores,
que estão sempre em busca de relações secretas entre as coisas, às
vezes parecem estranhos. Em nosso mundo veloz, esses sujeitos calados
que passam horas a fio sozinhos com seus escritos funcionam, no
entanto, como reservas de sentido. Em um de seus livros mais
perturbadores, Doctor Pasavento, de 2005 e ainda inédito no
Brasil, o escritor catalão Enrique Vila-Matas leva um de seus
personagens, o professor Morante, a dizer: “A literatura consiste
em dar à trama da vida uma lógica que ela não tem”. Em outras
palavras: consiste em inventar tramas. De modo ainda mais simples:
consiste em inventar.
Não
pense o leitor que sei todas essas frases de cor. Já disse que minha
memória é frágil, até porque está sempre atulhada de frases e
mais frases. Na verdade, sou viciado em cadernos – nessa manhã
mesmo, sem saber por quê, comprei um caderno novo em uma papelaria
da rua Barata Ribeiro. Estou sempre a anotar frases, ideias soltas, a
resumir pensamentos e relatos. Como um escolar, carrego sempre
cadernos na mochila.
A
mania de anotar provoca suspeita. Aqui mesmo na calçada do prédio
em que me hospedo, em Copacabana, vejo sempre uma mendiga, senhora de
idade avançada e que fala sozinha, a anotar e anotar em pedaços e
tiras de papel. Já tentei descobrir o que tanto resmunga e o que
tanto escreve. Não consegui e, confesso, isso me incomoda.
Escrever
(como pensar em silêncio) também provoca suspeitas – seja a
escrita do romancista famoso ou a escrita da mendiga descabelada. E
por quê? Porque, quando escreve, o sujeito se volta para si. Cai em
si, como prefiro dizer – e essa queda para dentro, em um mundo em
que tudo despenca para fora, se torna obscena. Em um mundo em que
tudo se mostra, o obsceno não é mostrar, o obsceno é esconder.
Vem-me
à mente, então, um ensaio em que Vila-Matas relata o espanto de
Santo Agostinho quando ele, ainda jovem, entrou no quarto de Santo
Ambrosio, seu mestre, e o surpreendeu lendo em silêncio. Vou ao
livro de Vila-Matas: “Até ali, a leitura normal, comum, se fazia
sempre em voz alta. Santo Ambrosio foi o primeiro leitor silencioso”.
Mais uma vez: o que espantou Agostinho não foi que o mestre
mostrasse o que lia. Ao contrário: foi que o escondesse.
Vila-Matas
(que sem dúvida é um de meus mestres) é um leitor maníaco.
Limita-se, no caso, a repetir uma história que leu em um livro de
Alberto Manguel. Eu cheguei à mesma história enquanto lia um livro
de Fiodor Dostoiévski. Lia? Ou, na mesa de um bar, entediado, ou
apenas um pouco sonolento, silenciosamente (e a ênfase aqui está no
silêncio), fui acossado por ela? O silêncio incomoda porque expõe
(como o avesso de uma saia) a ponta de um desejo. Quando fala do
silêncio, Dostoiévski fala, na verdade, do desejo. Fala da
subjetividade – e o tema de Doctor Pasavento é justamente a
decadência da subjetividade em um mundo cada vez mais prático e
mais extrovertido. Mas lá estou eu de novo a me desviar!
E
por que o desejo é tão incômodo? Mostra Dostoiévski que, quando
desejamos, não respeitamos as normas do bom gosto, do bem educado e
do belo. No subsolo do subjetivo, todos os valores se esfarelam. Nas
Memórias, leio: “Ter o direto de desejar para si mesmo algo
muito estúpido, sem estar comprometido com a obrigação de desejar
apenas o que é inteligente”. O desejo não inclui a sensatez nem a
utilidade. “Pode-se dizer tudo da história universal – tudo
quanto possa ocorrer à imaginação mais exaltada. Só não se pode
dizer o seguinte: que é sensata”, Dostoiévski escreve.
Em
silêncio, pensamos tudo, até as piores coisas. Mesmo na era das
psicoterapias e dos detectores de mentira, ainda é possível
acreditar no seguinte: podemos pensar, e ninguém nunca saberá.
Quando externamos os pensamentos, mesmo os mais livres e perigosos,
eles passam pelo filtro do civilizado. Na vida social, tudo tem
limites. Mas que limites? Hoje se fala muito em ética, mas que outra
coisa é a ética senão o outro?
Já
em silêncio, naquele lugar secreto a que ninguém mais tem acesso,
tudo é possível. Nesse magma de ideias imprecisas e inconvenientes
e de pensamentos instáveis e discrepantes, navegam os escritores.
Por isso precisam escrever: para dar forma ao que, de outra forma,
ferveria e ferveria, até destruí-los.
Sem
o fogo do silêncio não há escrita. É preciso que haja silêncio,
longo, misterioso, torturante, para que a palavra, quando enfim dita,
quando finalmente escrita, tenha valor.
José
Castello, in Sábados inquietos
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