Contou-nos
o amigo:
A
história começou quando perdi a eleição na sociedade científica
de que faço parte. Senti a injustiça. Sempre fora um defensor
daquela instituição, sacrificava meus interesses, só pelo
interesse da associação. E haviam vencido, contra mim, os que
vinham de fora, os que nada fizeram de concreto para a casa. Fiquei
abaladíssimo. No dia seguinte ao acontecimento, eu ouvia minha
mulher, que, com a sagacidade feminina procurava consolar-me,
dizendo:
— Está
você aí todo sorumbático. Pois, olhe, eu não queria dizer nada,
porque não desejava intervir na sua paixão pela Sociedade, para não
me tornar, como tantas mulheres, a inimiga da vida pública do
marido. Mas, bem mais importante do que aquele viveiro de vaidades é
a nossa própria casa! Você nem tinha mais tempo para o nosso filho!
Estava ficando ranzinza. Deixamos os nossos passeios, os nossos
cinemas. Agora você vai ver que não perdeu e sim lucrou. Nenhuma
namorada fora de casa lhe roubaria tanto tempo quanto essa Sociedade
formada de meia dúzia de invejosos...
As
palavras de minha mulher pareciam semente em bom terreno... Já me
sentia outro, quando a campainha tocou, e ele apareceu. Parecia uma
visita de pêsames. Sentou-se empertigado quando lhe ofereci a
cadeira, e me disse com voz cava:
— Venho
trazer-lhe a minha solidariedade, diante do golpe que sofreu.
Há
muitas coisas esquisitas, que nem o pensamento humano pode definir.
Quando o homem falou em golpe, juro que sofri uma dor violenta no
coração... Foi, mesmo, uma dor até física. E todo aquele ânimo,
que minha mulher me infundira, se foi por água abaixo.
— Sou
o amigo das horas más... disse-me ele. - Sou o amigo que sempre
falta aos outros, mas de que o senhor dispõe...
Fiquei
sensibilizadíssimo. Todavia, notei que ele parecia não me querer
largar mais. Almoçou comigo e durante todo o tempo do almoço me
olhou com cara compungida. E foi-me levar ao trabalho, dizendo com
sua fala especial:
— Já
tive um amigo que não sustentou um golpe igual ao que o senhor
recebeu, e deu um tiro no ouvido... Veja que loucura!
Comecei
meu trabalho de perna bamba. Mas, apesar daquele mau momento, vi, em
breve, que quem tinha razão era minha mulher. E, dois meses depois,
tive uma surpresa feliz. Fui convidado para uma importante missão
científica. Minha casa se encheu de amigos, que me felicitaram. Só
o amigo das horas más não apareceu. Apareceu, sim, mas foi na
operação de apendicite que sofri:
— Uma
operação sempre é um risco, um risco muito sério. E eu quero que
o senhor me considere sempre o amigo das horas difíceis, das horas
más, do sofrimento...
Agradeci
desta vez, meio sonolento ainda, sob o efeito do éter. Algum tempo
depois, na cidade onde nasci, me foi feita uma homenagem. Uma festa
que me comoveu, profundamente. A notícia trouxe, quando eu voltei do
interior, uma legião de pessoas contentes à minha casa, pessoas que
me vieram abraçar, satisfeitas com o acontecimento. Mas o amigo das
horas más, ah, esse não pisou em casa. Penso que, exatamente, uns
seis meses depois, minha mãe faleceu. E antes que até muitos
parentes soubessem, pois que ela morreu subitamente, eis que me surge
à porta
o
amigo das horas más.
— Quero
ser o primeiro a dar-lhe os sentidíssimos pêsames... Faço questão
de estar a seu lado, nessa desgraça... E olhe: vou fazer até o
discurso à beira da sepultura.
Perdi
a paciência. Só então compreendi que aquele homem era, na verdade,
o amigo das HORAS MÁS, mas não o MEU AMIGO. Era uma espécie de
corvo da minha tristeza. Abracei-me a ele, levei-o para fora, e disse
com voz serena:
—
Não,
meu caro. Desta vez você não almoça a minha mágoa, como naquele
dia. Vá se fartar de outras desventuras, porque, de hoje em diante,
eu deixo de ser seu fornecedor... O homem saiu, tropeçando. Voltei
para junto do corpo de minha mãe que até parecia sorrir... E desde
esse dia me vi livre do amigo das horas más.
Dinah
Silveira de Queiroz, in
Quadrante
2
Nenhum comentário:
Postar um comentário