segunda-feira, 11 de abril de 2016

A primeira minhoca

O pai pega a filha na escola e ela, mal pega na mão, pergunta se ele conhece minhoca.
É apelido de alguém?
Não, pai, é um bichinho que vive na terra, parece uma cobrinha mas não é cobra.
Eu sei, conheço minhoca — vão de mãos dadas. — Nenhuma especialmente, mas conheço, quer dizer, conheço assim como todo mundo conhece, mas não sou nenhum minhocólogo.
Que que é isso, pai?
É o especialista em minhoca, mas não conta pra ninguém, fica só entre nós, tá?
Venta com cheiro de chuva, ele olha para o céu escuro e apressa o passo, os lápis chacoalham na mochila dela.
(Chovia, os meninos recitavam "engorda, minhoca, peixe morre pela boca" e "minhoca dura, minhoca mole, minhoca boa é a que peixe engole". E ele recitava os versinhos como todos os meninos, e cortava uma vara de taquara, deixando secar ao sol, botava linha na vara e chumbada e anzol na linha, e ia com os outros para o rio. Mas, enquanto eles cavocavam a terra ainda úmida, para pegar minhocas, ele já começava a pescar com milho-verde ou bolinhas de macarrão.
Ganhava tempo, enquanto os outros cavocavam, e sempre ia mesmo precisar de tempo: os peixes preferiam as minhocas. Ele ficava vendo os outros a tirar lambaris e tambiús do rio, enquanto os peixinhos miúdos roíam as bolinhas de macarrão, tão miudinhos que não conseguia fisgar nenhum e, quando fisgou, foi um vexame, o menor peixe de todos os tempos. Já quando iscava com milho, ficava horas olhando a vara sem nenhum belisquinho, embora às vezes, bem às vezes, pegasse um campineiro ou uma piaba.
Só não pegava em minhoca, aquela nojeira remelexente e gosmenta, que os meninos cortavam nos dedos; com os mesmos dedos, com o cheiro de carne e terra das minhocas, os mesmos dedos com que pegavam os sanduíches dos embornais e comiam com gosto, enquanto ele ia pescar longe ou pegar frutinhas no mato, coisa de mais certo resultado.)
Então você acha uma minhoca pra mim, pai?
Ele vê que o vento levou a cabeça para longe dali, mas o corpo continua a andar apressado com a filha pela mão, entre gente que se abotoa correndo, no vento já em redemoinhos, voam folhas e papéis.
Pra que a minhoca, posso saber?
É pra estudar, pai.
Ah, os estudos. A escola. A caminhada do homem para o conhecimento, o abecedário e a raiz quadrada passando de geração para geração. E agora, depois da cebola, das batatas, dos feijões, das frutas, dos ovos e tudo mais que a escola tinha pedido nas últimas semanas para a grande sopa educacional, eis que chegava a fase minhocática.
Mas por que minhoca, filha, não pode ser besouro, lagartixa?
Não, pai, minhoca! Minhoca faz bem pra terra, pai, aí a terra dá bastante coisa pra gente comer!
Eu sei, eu sei.
Minhoca é importante no mundo, pai!
Eu sei!
Começa a chover. Ficam na marquise da padaria.
Chuva é chato, né, pai?
Pra minhoca é muito bom.
Por quê, pai?
Depois te conto, na hora de dormir.
Ao menos isso, não terá de repetir a história do cavalinho que não gostava de cenoura ou qualquer outra. Chove. Passam na enxurrada os papéis que agorinha mesmo voavam.
(Os jornais viram lixo, é seu destino, tudo tem sua natureza. Quem sabe minhocas não mereçam mesmo nojo algum. Por quê, só porque comem terra? Comer fetos — como comemos ovos de aves e peixes — não será piormente nojento? Isto, é claro, pensando bem, embora o nojo não pense, só sinta, não é?)
Pai, por que minhoca não tem perna?
Porque debaixo da terra não tem onde andar. Mas você vai conhecer bem minhoca, eu vou achar uma minhoca pra você.
Mas passa a chuva, correm no chuvisqueiro, esquecem. No dia seguinte ela lembra na hora do almoço. E insiste, e choraminga, até ele sair para o quintal, ainda com o gosto de comida na boca, para cavocar minhocas. A primeira minhoca, tonta de tanta luz de repente, se enrola nos dedos, ele solta com nojo, a filha pega, a minhoca parece que até se acalma.
Ele cavoca mais, mais minhocas aparecem.
Escolhe uma, filha. A maior, né?
Não, pai, a mais bonita.
Ela aponta uma minhoca avermelhada, com um anel azulado no meio:
Pode pegar, pai, ela não faz mal.
Ele pega, com calma, fechando a mão sobre a minhoca que se acalma nessa pequena escuridão, e a filha sorri para ele. Depois ele lava as mãos várias vezes. Ela vai para a escola com o potinho de iogurte cheio de terra e a minhoca, como quem leva um troféu. Na janta, ele pergunta como foi a aula com a minhoca.
A Miminha, pai? Nem precisei dela, a professora usou só uma minhoca pra cortar e mostrar como é por dentro. Aí a gente soltou as outras no jardim.
A mãe pergunta se eles não podem falar de outra coisa às refeições, a menina diz que minhoca não é nojenta, é boa e bonita. A mãe suspira fundo, ela sussurra:
Foi minha primeira minhoca, pai.
Foi minha primeira minhoca também, filha.
E depois ficam juntos na janela, vendo a chuva cair do céu, passando pelo nosso mundo para ir molhar o mundo das minhocas.
Domingos Pellegrini, in Bicho-gente

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