“Que
culpa temos nós dessa planta da infância, de sua sedução, de seu
viço e constância?”
(Jorge
de Lima)
1
Os
olhos no teto, a nudez dentro do quarto; róseo, azul ou violáceo, o
quarto é inviolável; o quarto é individual, é um mundo, quarto
catedral, onde, nos intervalos da angústia, se colhe, de um áspero
caule, na palma da mão, a rosa branca do desespero, pois entre os
objetos que o quarto consagra estão primeiro os objetos do corpo; eu
estava deitado no assoalho do meu quarto, numa velha pensão
interiorana, quando meu irmão chegou pra me levar de volta; minha
mão, pouco antes dinâmica e em dura disciplina, percorria vagarosa
a pele molhada do meu corpo, as pontas dos meus dedos tocavam cheias
de veneno a penugem incipiente do meu peito ainda quente; minha
cabeça rolava entorpecida enquanto meus cabelos se deslocavam em
grossas ondas sobre a curva úmida da fronte; deitei uma das faces
contra o chão, mas meus olhos pouco apreenderam, sequer perderam a
imobilidade ante o voo fugaz dos cílios; o ruído das batidas na
porta vinha macio, aconchegava-se despojado de sentido, o floco de
paina insinuava-se entre as curvas sinuosas da orelha onde por
instantes adormecia; e o ruído se repetindo, sempre macio e manso,
não me perturbava a doce embriaguez, nem minha sonolência, nem o
disperso e esparso torvelinho sem acolhimento; meus olhos depois
viram a maçaneta que girava, mas ela em movimento se esquecia na
retina como um objeto sem vida, um som sem vibração, ou um sopro
escuro no porão da memória; foram pancadas num momento que puseram
em sobressalto e desespero as coisas letárgicas do meu quarto; num
salto leve e silencioso, me pus de pé, me curvando pra pegar a
toalha estendida no chão; apertei os olhos enquanto enxugava a mão,
agitei em seguida a cabeça pra agitar meus olhos, apanhei a camisa
jogada na cadeira, escondi na calça meu sexo roxo e obscuro, dei
logo uns passos e abri uma das folhas me recuando atrás dela: era
meu irmão mais velho que estava na porta; assim que ele entrou,
ficamos de frente um para o outro, nossos olhos parados, era um
espaço de terra seca que nos separava, tinha susto e espanto nesse
pó, mas não era uma descoberta, nem sei o que era, e não nos
dizíamos nada, até que ele estendeu os braços e fechou em silêncio
as mãos fortes nos meus ombros e nós nos olhamos e num momento
preciso nossas memórias nos assaltaram os olhos em atropelo, e eu vi
de repente seus olhos se molharem, e foi então que ele me abraçou,
e eu senti nos seus braços o peso dos braços encharcados da família
inteira; voltamos a nos olhar e eu disse “não te esperava” foi o
que eu disse confuso com o desajeito do que dizia e cheio de receio
de me deixar escapar não importava com o que eu fosse lá dizer,
mesmo assim eu repeti “não te esperava” foi isso o que eu disse
mais uma vez e eu senti a força poderosa da família desabando sobre
mim como um aguaceiro pesado enquanto ele dizia “nós te amamos
muito, nós te amamos muito” e era tudo o que ele dizia enquanto me
abraçava mais uma vez; ainda confuso, aturdido, mostrei-lhe a
cadeira do canto, mas ele nem se mexeu e tirando o lenço do bolso
ele disse “abotoe a camisa, André”.
Raduan
Nassar,
in Lavoura
arcaica
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