Em
1888, Van Gogh compartilhou, por três meses, uma casa com o pintor
Paul Gauguin. Um dia, o amigo resolveu retratá-lo enquanto pintava ele
pintava seus girassóis. Ao ver pela primeira vez o quadro, que o
flagra no último lugar em que poderia estar, pois um pintor se julga
sempre fora da pintura, Van Gogh exclamou: “Sou eu, é claro, mas
eu me tornando louco”.
A arte como expressão da loucura ou, ao contrário, como opção pela loucura? Van Gogh teve um psiquiatra que, adepto da segunda hipótese, pensou em “curá-lo” da pintura. É claro, não conseguiu. A arte como vírus, como uma contaminação?
Penso nas poucas telas que Clarice Lispector pintou. Telas tensas, desagradáveis: manifestações de gênio ou de insanidade? Elas ajudaram a deprimir Clarice ou, ao contrário, ajudaram a salvá-la? Recordo a Clarice que visitei um dia, sentada em sua cozinha diante de uma fatia de bolo, um tanto apática, a me dizer: “Comer bolo não me interessa. O que eu preciso é de água. De água e de literatura”.
Vista assim, como uma necessidade primária, a literatura revela sua potência, mas também seus riscos. Riscos que os escritores, para se consolar, transportam para o interior da escrita, como nos relatos reunidos em Os melhores contos de loucura, antologia organizada por Flávio Moreira da Costa. Histórias assombrosas, assinadas por autores cuja grandeza está fora de questão, como Anton Tchecov, Luigi Pirandello, Nicolai Gogol, Edgar Allan Poe e Guy de Maupassant. Mas sobre quem pesa também, ainda hoje, a suspeita da insensatez.
Uma frase de Samuel Beckett, no pórtico da antologia, resume: “Todos nascem loucos; alguns permanecem”. Para dar sentido àquelas partes de si que não pode controlar, o escritor deve correr o risco de sair de si. Ele se dedica justamente àquilo que, anestesiados pela ideia de normalidade, evitamos. Retorna ao magma primordial que, diz Beckett, em alguns infelizes, por falta de palavras e não por causa das palavras, se perpetua.
Hilda Hilst aceitou, um dia, um convite da Universidade Católica de São Paulo para assistir a uma defesa de tese sobre sua obra. A dissertação se chamava “A linguagem delirante de Hilda Hilst”; havia um mau agouro no convite, mesmo assim ela foi. Toda vez que uma senhora da banca falava de paranoia ou de loucura, apontava em sua direção. E ela, aflita, olhava para trás na esperança de tratar-se de outra pessoa. De certa forma, se tratava, sim: não era da mulher Hilda que se falava, mas de algo muito difícil que, ainda assim, ela jamais descartou.
Na saída, Na saída, Hilda não se conteve e perguntou à professora: “Os médicos já chegaram com a camisa de força?”. A matéria da literatura vem, de fato, dessas zonas abissais em que as certezas se esgarçam, a nitidez se esvai e a dúvida comanda. Muitos não suportam. “Nascemos e crescemos num cárcere e por isso achamos naturais esses ferros nos pulsos e nos pés”, escreveu o alemão Georg Büchner, o autor de Woyzeck. Mas os escritores, não: eles preferem sangrar mãos e pés, e bordejar o abismo, a sucumbir. E isso se parece com a loucura.
O Problema é que aquilo que o escritor enfrenta está sempre dentro de si. De certo forma, em consequência, todo escritor escreve “contra si”. Daí a dúvida que Machado sintetiza em O alienista: estarão os escritores no lugar dos médicos, que amparam e curam, ou de seus pacientes, que resistem e esperneiam? A resposta não é fácil: eles ocupam ao mesmo tempo os dois lugares: vestem o jaleco da saúde, mas também os grilhões da ignorância.
Na época Na época de Tchecov, os russos idealizavam a vida no campo. Com sua frieza de médico, ele se encarregou de mostrar que ali onde se via esplendor e paz havia, também, ignorância, brutalidade, maldade. Numa palavra banal: loucura. Não é fácil. Foi no auge de seus delírios que Qorpo-Santo escreveu sua genial Enciclopédia. Foi só porque teimou em remexer na brutalidade do real que Lima Barreto terminou, tantas vezes, internado como louco.
Houve Houve o dia em que Clarice Lispector aceitou um convite para falar em um Congresso Mundial de Bruxaria, na Colômbia. Avessa a viagens e a plateias, mesmo assim ela foi. O que a levou até lá, já que tinha certeza de que fracassaria? Não conseguiu ler seu texto, alguém teve que ler em seu lugar. Limitou-se a ouvir, como se ele fosse – e de fato sempre é – de um outro. De algum louco?
Não era um discurso, mas um dos contos mais enigmáticos que escreveu: “O ovo e a galinha”. Relato que parte, no entanto, da mais primitiva das perguntas: “Qual dos dois vem primeiro?” Clarice expõe a ideia de que a galinha (assim como o escritor) sofre de um mal desconhecido: “O mal desconhecido da galinha é o ovo”, diz. Sonsa e estúpida, ela permanece em estado de devaneio, e enquanto isso, sem saber o que faz, põe seus ovos. “A galinha é um grande sono”, Clarice diz. E, num golpe certeiro, arremata: “A nossa visão de sua vida interior é o que nós chamamos de galinha”.
Não se trata aqui da vida interior dos psicólogos, com sentimentos arcaicos, traumas infantis e proibições tirânicas. Trata-se de algo que se passa dentro dela como se estivesse fora – alguma coisa que já não pode controlar, como se estivesse dormindo, quando está bem acordada.
É esse descompasso que, atordoados, e confundindo as palavras, chamamos de “loucura”. Como o pai diz do filho que largou a engenharia para fazer arte: “Isso é uma loucura”. É desse poço de águas turvas, nos mostra Beckett, que todos viemos. E é retornando a ele, como a galinha a meditar em seu poleiro, absorta na ignorância, que um escritor, ao sair de si, chega a ser o que é.
Escrever Escrever pede coragem. Larga-se tudo, para voltar a uma origem que parecia vencida. Por isso, diz Clarice, quando uma galinha vê um ovo “ela não o reconhece”. Ele é tão estranho, tão enigmático, que parece não ser seu. Escritores também desconhecem, e tremem, diante de seus livros. Alguns podem, até, perder o domínio de si. Mas podem, também, repisar as palavras de Clarice: “Não o reconheço, e meu coração
bate”.
José
Castello,
in Sábados inquietos
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