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Há
algum tempo venho afinando certa mania. Nos começos chutava tudo o
que achava. A vontade era chutar. Um pedaço de papel, uma ponta de
cigarro, outro pedaço de papel. Qualquer mancha na calçada me fazia
vir trabalhando o arremesso com os pés. Depois não eram mais
papéis, rolhas, caixas de fósforos. Não sei quando começou em mim
o gosto sutil. Somente sei que começou. E vou tratando de
trabalhá-lo, valorizando a simplicidade dos movimentos, beleza que
procuro tirar dos pormenores mais corriqueiros da minha arte se
afinando.
Chutar
tampinhas que encontro no caminho. É só ver tampinha. Posso
diferenciar ao longe que tampinha é aquela ou aquela outra. Qual a
marca (se estiver de cortiça para baixo) e qual a força que devo
empregar no chute. Dou uma gingada, e quase já controlei tudo. Vou
me chegando, a vontade crescendo, os pés crescendo para a tampinha,
não quero chute vagabundo. Errei muitos, ainda erro. É plenamente
aceitável a ideia de que para acertar, necessário pequenas erradas.
Mas é muito desagradável, o entusiasmo desaparecer antes do chute.
Sem graça.
Meu
irmão, tipo sério, responsabilidades. Ele, a camisa; eu, o avesso.
Meio burguês, metido a sensato. Noivo…
—
Você
é um largado. Onde se viu essa, agora!
É
que eu, às vezes, interrompo conversas na calçada para os meus
chutes.
Só
um sujeito como eu, homem se atilando naquilo que faz, pode avaliar
um chute digno para determinadas tampinhas. Porque como as coisas, as
tampinhas são desiguais. Para algumas que vêm nas garrafas de água
mineral, reservo carinho. Cuidado particular, jeito. É doce
chutá-las bem baixo, para subirem e demorarem no ar. Ou de lado,
quase com o peito do pé, atingindo de chapa. Sobem. Não demoram
muito, que ainda não sou um grande chutador. Mas capricho, porque
elas merecem.
Minhas
tampinhas… Umas belezas.
Descobri
com encanto que meus sapatos de borracha se prestam melhor para
apurar minha tarefa. Doce e difícil tarefa de chutar tampinhas.
Realmente. A tampinha parece nem sentir. Vai até o outro lado da rua
com alguma facilidade. Está claro que na razão direta da propulsão
dos chutes. A borracha apenas toca o cimento, a tampinha desliza, vai
embora. Necessário equilibrar a força dos pés.
Mas
quem se entrega a criar vive descobrindo. Descobri o muito gostoso
“plac-plac” dos meus sapatos de saltos de couro, nas tardes e nas
madrugadas que varo, zanzando, devagar. Esta minha cidade a que minha
vila pertence, guarda homens e mulheres que, à pressa, correm para
viver, pra baixo e pra cima, semanas bravas. Sábados à tarde e
domingos inteirinhos — cidade se despovoa. Todos correm para os
lados, para os longes da cidade. São horas, então, do meu
“plac-plac”. Fica outra a minha cidade! Não posso falar dos meus
sapatos de saltos de couro… Nas minhas andanças é que sei! Só
eles constatam, em solidão, que somente há crianças, há pássaros
e há árvores pelas tardes de sábados e domingos, nesta minha
cidade.
Agora
me lembro — minhas favoritas vêm acima do gargalo das garrafas de
água mineral marca Prata. Em vermelho e branco. A cortiça coberta
por uma espécie de papel impermeável e branco e brilhante. O que
mais as valoriza é a cortiça forrada. Harmoniosas e originais.
Muito jeitosas.
Para
elas diligencio firmeza, apuro. Às vezes, encontrando-as por
circunstância na rua, eu as guardo no bolso do paletó, para
aproveitá-las mais tarde. Porque só os sapatos de borracha são
dignos de minhas favoritas. E mesmo calçando-os, fico estudando os
chutes. Necessário valorizá-las como merecem, ir trabalhando os
pontapés com cautela, até que a borracha se aproxime de leve e
atinja a tampinha e a faça subir, voar, pequenas distâncias
atravessando na noite. Só o barulho da borracha no chute e depois o
barulho da tampinha aterrisando. E um depois do outro, os dois se
procuram, os dois se encontram, se juntam os dois, se prendem, se
integram, amorosamente.
É preciso sentir a beleza de uma tampinha na noite, estirada na
calçada. Sem o quê, impossível entender meu trabalho.
Às
tampinhas comuns não ligo. Ordinárias, aparecem à toa, à toa.
Vadias da calçada. Não as abandono, porém. Sirvo-me delas para
experimentos, estado rude dos meus chutes em potencial. Porque
desenvolvo variações, aprendo descobrindo chutes, chaleiras, usando
o calcanhar, os lados dos pés. Com o direito, com o esquerdo, meio
de lado… Tentativas.
Consigo,
por exemplo, embocá-las nos bueiros da rua. Se é impossível
trabalhar na calçada, passo para o asfalto e fico a chutar. Muito
bom pela madrugada, quando os carros são poucos e a luz dos postes
se atira sobre as tampinhas no asfalto.
Muito
injusto esquecer-me de que as de cerveja preta são interessantes.
Igualmente. Não posso desprezá-las. Elas com seus símbolos no
meio. Uma cabeça de bovino ou muar. Também me dedico com simpatia
às de cerveja preta. Provavelmente porque me lembram serões,
almoços improvisados, trechos duros da vida.
Havia
no quartel uma caixa delas. Reservadas para sargentos do dia. Cada um
tinha direito a uma. Na geladeira do aprovisionamento sempre havia.
Difícil cavar cerveja preta. O comandante me encarregou de tomar
conta do aprovisionamento, ajudando o sargento Cunha. Pagar o
mantimento ao pessoal do rancho. Boa vida. Meu lugar bem que era
outro, lá na secretaria. Datilografando, esquentando a cabeça com
números e preços na máquina de calcular. Mas eu ensinava jiu-jítsu
aos filhos do comandante, era peixe… As cervejas pretas eram
inacessíveis. Todos queriam. Os homens viviam de olho naquilo.
—
Se
sumir, desconta-se na folha de pagamento.
Na
minha folha de pagamento, é claro. Ordem de não sei quem.
Eu
não era tão trouxa nem tão caxias. Guiava, saía com o caminhão,
apareciam virações.
—
Você
não é praça? Se vira.
Eu
me defendia de acordo. Pois um dia, o sargento Cunha esqueceu-se de
uma caixa no relatório. Ficavam cópias do relatório dentro do
armário. Espiá-las. Era a primeira coisa que eu fazia no começo de
cada mês. Às vezes, sobrava alguma coisa que faltava no relatório…
Eu me ria.
—
O
sargento não é santo.
E
quem é santo?
Disputa
brava, então. Porque o homem percebia as minhas olhadelas no
relatório. Um tapeando o outro, se escondendo. Faca de dois gumes.
—
Fulano,
você não viu uma lata de marmelada?
—
Não
senhor. Este mês não veio marmelada.
—
Ah…
João
Antônio,
in Afinação
e a arte de chutar tampinhas
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