segunda-feira, 25 de abril de 2016

A arte de chutar tampinhas

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Há algum tempo venho afinando certa mania. Nos começos chutava tudo o que achava. A vontade era chutar. Um pedaço de papel, uma ponta de cigarro, outro pedaço de papel. Qualquer mancha na calçada me fazia vir trabalhando o arremesso com os pés. Depois não eram mais papéis, rolhas, caixas de fósforos. Não sei quando começou em mim o gosto sutil. Somente sei que começou. E vou tratando de trabalhá-lo, valorizando a simplicidade dos movimentos, beleza que procuro tirar dos pormenores mais corriqueiros da minha arte se afinando.
Chutar tampinhas que encontro no caminho. É só ver tampinha. Posso diferenciar ao longe que tampinha é aquela ou aquela outra. Qual a marca (se estiver de cortiça para baixo) e qual a força que devo empregar no chute. Dou uma gingada, e quase já controlei tudo. Vou me chegando, a vontade crescendo, os pés crescendo para a tampinha, não quero chute vagabundo. Errei muitos, ainda erro. É plenamente aceitável a ideia de que para acertar, necessário pequenas erradas. Mas é muito desagradável, o entusiasmo desaparecer antes do chute. Sem graça.
Meu irmão, tipo sério, responsabilidades. Ele, a camisa; eu, o avesso. Meio burguês, metido a sensato. Noivo…
Você é um largado. Onde se viu essa, agora!
É que eu, às vezes, interrompo conversas na calçada para os meus chutes.
Só um sujeito como eu, homem se atilando naquilo que faz, pode avaliar um chute digno para determinadas tampinhas. Porque como as coisas, as tampinhas são desiguais. Para algumas que vêm nas garrafas de água mineral, reservo carinho. Cuidado particular, jeito. É doce chutá-las bem baixo, para subirem e demorarem no ar. Ou de lado, quase com o peito do pé, atingindo de chapa. Sobem. Não demoram muito, que ainda não sou um grande chutador. Mas capricho, porque elas merecem.
Minhas tampinhas… Umas belezas.
Descobri com encanto que meus sapatos de borracha se prestam melhor para apurar minha tarefa. Doce e difícil tarefa de chutar tampinhas. Realmente. A tampinha parece nem sentir. Vai até o outro lado da rua com alguma facilidade. Está claro que na razão direta da propulsão dos chutes. A borracha apenas toca o cimento, a tampinha desliza, vai embora. Necessário equilibrar a força dos pés.
Mas quem se entrega a criar vive descobrindo. Descobri o muito gostoso “plac-plac” dos meus sapatos de saltos de couro, nas tardes e nas madrugadas que varo, zanzando, devagar. Esta minha cidade a que minha vila pertence, guarda homens e mulheres que, à pressa, correm para viver, pra baixo e pra cima, semanas bravas. Sábados à tarde e domingos inteirinhos — cidade se despovoa. Todos correm para os lados, para os longes da cidade. São horas, então, do meu “plac-plac”. Fica outra a minha cidade! Não posso falar dos meus sapatos de saltos de couro… Nas minhas andanças é que sei! Só eles constatam, em solidão, que somente há crianças, há pássaros e há árvores pelas tardes de sábados e domingos, nesta minha cidade.
Agora me lembro — minhas favoritas vêm acima do gargalo das garrafas de água mineral marca Prata. Em vermelho e branco. A cortiça coberta por uma espécie de papel impermeável e branco e brilhante. O que mais as valoriza é a cortiça forrada. Harmoniosas e originais. Muito jeitosas.
Para elas diligencio firmeza, apuro. Às vezes, encontrando-as por circunstância na rua, eu as guardo no bolso do paletó, para aproveitá-las mais tarde. Porque só os sapatos de borracha são dignos de minhas favoritas. E mesmo calçando-os, fico estudando os chutes. Necessário valorizá-las como merecem, ir trabalhando os pontapés com cautela, até que a borracha se aproxime de leve e atinja a tampinha e a faça subir, voar, pequenas distâncias atravessando na noite. Só o barulho da borracha no chute e depois o barulho da tampinha aterrisando. E um depois do outro, os dois se procuram, os dois se encontram, se juntam os dois, se prendem, se integram, amorosamente. É preciso sentir a beleza de uma tampinha na noite, estirada na calçada. Sem o quê, impossível entender meu trabalho.
Às tampinhas comuns não ligo. Ordinárias, aparecem à toa, à toa. Vadias da calçada. Não as abandono, porém. Sirvo-me delas para experimentos, estado rude dos meus chutes em potencial. Porque desenvolvo variações, aprendo descobrindo chutes, chaleiras, usando o calcanhar, os lados dos pés. Com o direito, com o esquerdo, meio de lado… Tentativas.
Consigo, por exemplo, embocá-las nos bueiros da rua. Se é impossível trabalhar na calçada, passo para o asfalto e fico a chutar. Muito bom pela madrugada, quando os carros são poucos e a luz dos postes se atira sobre as tampinhas no asfalto.
Muito injusto esquecer-me de que as de cerveja preta são interessantes. Igualmente. Não posso desprezá-las. Elas com seus símbolos no meio. Uma cabeça de bovino ou muar. Também me dedico com simpatia às de cerveja preta. Provavelmente porque me lembram serões, almoços improvisados, trechos duros da vida.
Havia no quartel uma caixa delas. Reservadas para sargentos do dia. Cada um tinha direito a uma. Na geladeira do aprovisionamento sempre havia. Difícil cavar cerveja preta. O comandante me encarregou de tomar conta do aprovisionamento, ajudando o sargento Cunha. Pagar o mantimento ao pessoal do rancho. Boa vida. Meu lugar bem que era outro, lá na secretaria. Datilografando, esquentando a cabeça com números e preços na máquina de calcular. Mas eu ensinava jiu-jítsu aos filhos do comandante, era peixe… As cervejas pretas eram inacessíveis. Todos queriam. Os homens viviam de olho naquilo.
Se sumir, desconta-se na folha de pagamento.
Na minha folha de pagamento, é claro. Ordem de não sei quem.
Eu não era tão trouxa nem tão caxias. Guiava, saía com o caminhão, apareciam virações.
Você não é praça? Se vira.
Eu me defendia de acordo. Pois um dia, o sargento Cunha esqueceu-se de uma caixa no relatório. Ficavam cópias do relatório dentro do armário. Espiá-las. Era a primeira coisa que eu fazia no começo de cada mês. Às vezes, sobrava alguma coisa que faltava no relatório… Eu me ria.
O sargento não é santo.
E quem é santo?
Disputa brava, então. Porque o homem percebia as minhas olhadelas no relatório. Um tapeando o outro, se escondendo. Faca de dois gumes.
Fulano, você não viu uma lata de marmelada?
Não senhor. Este mês não veio marmelada.
Ah…
João Antônio, in Afinação e a arte de chutar tampinhas

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