quarta-feira, 30 de março de 2016

Sem ? é impossível perguntar

Serginho olhou para o teclado e apertou a tecla 2.
Em seguida, digitou o shift e apertou o 2.
Apareceu o símbolo @. O que será isso?
Depois, ele apertou o shift e o símbolo + surgiu no monitor. Serginho ria, divertia-se com a novidade.
Se não apertasse a tecla shift, em lugar do + aparecia o sinal =.
O que será que queria dizer?
Que o + e o = são iguais, dependendo da tecla shift?
Se quisesse o 5, bastava apertar a tecla 5.
No entanto, ao apertar o shift junto com o 5, o que apareceu na tela foi um símbolo engraçado, %.
Perguntou e o pai explicou que era porcentagem.
O que quer dizer porcentagem?
O pai ficou calado uns minutos.
Veja! Você tem o número 100. Mas deseja apenas 10% de 100. Ou seja, você deseja apenas 10.
Por que vou querer 10% de 100?
Era uma boa pergunta, o pai ficou de responder no dia seguinte, estava atrasado para o trabalho. Serginho teve certeza de que o pai não sabia o que era porcentagem e ficou alegre. Tão bom descobrir que o pai da gente não sabe todas as coisas do mundo. Assim fica igual à gente. Havia meninos cujos pais sabiam tudo, faziam tudo, podiam tudo.
Eram meninos chatos, pentelhos, pareciam os pais. Ou será que eram mentirosos?
Todavia, Serginho não estava preocupado com nada disso. Tinha descoberto as mágicas do teclado, as estranhezas que podia fazer com ele.
Ao apertar o shift e o 3, surgia uma gradinha. Assim: #.
O que seria? Para que serve? Para fazer uma jaula? Para prender um mosquito? A questão era: para que servem as coisas, os sinais diferentes que a gente pode produzir no teclado de um computador?
Serginho gostou do 8 misturado ao shift. Ele produzia uma estrelinha simpática “.
Aproveitou, fez um monte, uma linha inteira
““““““““““““““““““““““““““““““““““
Já o 6 com o shift fazia surgir um chapeuzinho ^. Serginho não teve dúvidas. "Vou ter uma chapelaria", pensou.
^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^
Havia uma maçãzinha, ele apertou, nada aconteceu.
Ficou desapontado. Imaginou que sairiam maçãs, igual à^máquina de refrigerantes que havia na lanchonete da esquina.
Apertou o 1 sozinho. Nada se passou. Quando apertou o 1 com o shift, viu o sinal !.
Quando o pai chegou, ele perguntou o que era.
Isso é uma exclamação.
E o que é uma exclamação?
Como explicar uma exclamação?
Olhe, vou exclamar! Assim você saberá o que é a exclamação.
Então, disse, bem alto:
Puxa! Meu deus! Ora! Nem me diga!
Tudo com ênfase, firmeza, exclamativo.
Entendeu?
Não!
O pai aproveitou:
Viu? Esse não que você disse foi uma exclamação! Deu para sacar?
Ah, uma exclamação é um não bem forte?
A exclamação é o contrário da interrogação.
E o que é interrogação?
É uma pergunta.
Quer dizer que a exclamação é uma não-pergunta?
O pai disse que precisava ir trabalhar.
Serginho apertou a tecla que ficava perto do shift e parecia um tracinho caindo, bêbado. Saiu no monitor um ?.
O que é esse pauzinho torto?, pensou. Parece um corcunda!
O irmão mais velho, de 17 anos, passou com o skate nas mãos.
Sabe o que é isso, Ciro?
Sei, uma interrogação!
Apesar de brigar muito com o irmão, Serginho gostava dele, admirava. Ficou feliz, ia saber o que é uma interrogação.
O que é interrogação?
Sabe, é a coisa que você precisa quando vai fazer uma pergunta. Sem ela você não pode perguntar, ninguém vai saber que é pergunta.
E a exclamação?
É quando você exclama.
E quando exclamo?
Quando você diz puuuuuxxxxaaaaa!
Puuuuuuuuuxxxxxxaaaaa, tão fácil!
Serginho tremeu. Que maravilha! Coisa mais incrível. Se não existisse o ? ninguém poderia perguntar. Como viver sem perguntar? Todo mundo sabe que para ter o sinal ? é preciso apertar o shift e o tracinho caindo? Ciro saiu, estava atrasado, deixando Serginho intrigado. Que coisa engraçada.
Quer dizer que se eu não tiver um ? não posso fazer uma pergunta? E se não existisse o shift no teclado, não poderíamos perguntar? Estava achando tudo fascinante. O pai tinha trazido o computador, presente para os filhos, os mais velhos começavam a precisar para trabalhos da escola, para a internet, a irmã queria namorar por meio dele, a mãe desejava planejar o orçamento familiar, era uma família organizada.
O computador tinha chegado na noite anterior e Serginho desde manhã estava tentando decifrar mistérios. Era divertido, complicado. Acima de tudo, mágico. Ele podia digitar uma letra (ainda que não soubesse que a palavra era digitar) e colocá-la fechada dentro de duas cercas (8), podia criar um mundo de estrelas “, de +, de chapéus ^.
Não sabia ainda o que fazer com tudo, mas descobriria.
Teria de ser sozinho, o pai mostrava não ter paciência. Ou talvez não soubesse. Porque o computador parecia remeter a coisas da vida que não tinham explicações fáceis.
Igual aquela vez em que perguntara ao pai:
O que é vida?
Por que não se vê o ar?
Quando nasceram as letras?
Por que a água molha?
Por que o número 7 é o 7 e não o 8, e o 9 é 9 e não o 2?
Como a voz vem pelo telefone?
Serginho estava descobrindo que a vida e o computador abrigam coisas que os adultos não sabem, não conhecem, não explicam. Que a vida e o computador têm perguntas sem respostas. Mas que respostas existem e estão dentro do computador e das pessoas.
Disposto a descobrir, ele começou a apertar todas as teclas:
Caps lock, return, shift, tab, clear, help, home, page up, page down, control, option”
Estranhas palavras. Quem falava assim? Língua de computador. Encheu o monitor de números, símbolos, signos, letras.
E aí viu uma tecla delete.
Apertou.
Tudo sumiu, ficou o branco.
O computador tinha engolido suas coisas de volta, mas estava pronto a devolver.
Devolver seus mistérios, sua mágica, o encantamento do shift, essa tecla solitária que produz tanta diferença.
Ignácio de Loyola Brandão, in Deixa que eu conto

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