Havia
namoros mais francos, de passeios na ponte à noite, de longas
conversas nos portões dos quintais, de encontros aparentemente
casuais em lugares pouco vigiados; Nazaré e Pedrinho sabiam disso,
mas não estava neles modificar um namoro que nascera difícil,
cercado, travado.
Mas
um dia, no tempo das jabuticabas, tudo mudou sem esforço. Era
domingo, Pedrinho ia passando pela estrada entre os quintais e o
barranco do rio, viu as jabuticabeiras carregadas no quintal de
Nazaré. Jabuticaba não faltava em nenhum quintal, mas aquelas
estavam ali, tentando. Se o portão não estivesse trancado por
dentro, como era o costume… Pedrinho experimentou o trinco, estava
solto. Deu um empurrãozinho, o portão abriu.
Pedrinho
já estava catando jabuticabas num tronco, escolhendo as mais graúdas
e enchendo os bolsos para sair logo, quando uma voz falou:
—
Aí,
hein? Deixe madrinha saber.
Ele
parou envergonhado, olhou em volta e não viu ninguém.
—
Aqui,
bobo.
Nazaré
estava naquela mesma jabuticabeira, recostada num galho alto, os pés
numa forquilha, o vestido enrolado nas pernas.
—
Como
foi que você subiu?
—
Subindo.
—
É?
Pois eu quero ver você descer descendo.
—
Não
vai ver porque eu não deixo. Tinha graça.
Bastou
isso para Pedrinho encabular-se. A vontade dele foi ir embora
depressa, mas não seria grosseria demais, cavalice mesmo?
—
Não
precisa ficar vermelho. Basta virar as costas enquanto eu desço —
disse ela, ajudando-o a sair do impasse.
Ele
obedeceu depressa e ainda baixou a cabeça como garantia suplementar.
Um galho estalou, jabuticabas caíram no chão fofo de gravetos e
folhas secas, e logo Pedrinho sentiu na orelha o bafo da respiração
de Nazaré. Virou o rosto para esse lado, ela já tinha passado para
o outro. Experimentou de novo, ela ainda foi mais ligeira.
—
Não
precisa ficar se escondendo de mim que eu já vou — disse ele
frustrado.
—
Pra
onde?
—
Não
é da sua conta.
—
Hum,
antipático. Só porque eu não quis que você me visse descendo não
precisa ficar malcriado.
Ele
sentiu um calor repentino nas orelhas e um formigamento em todo o
rosto. Mulher parece que tira a vida para enfezar a gente. Que se
deve fazer num caso desses? Xingar? Sair correndo? É melhor não
fazer nada.
—
Ih,
bobo! É preciso ficar vermelho assim? Estou brincando.
—
Não
gosto desses brinquedos — disse ele emburrado.
—
Qual
é o brinquedo que você gosta?
—
Nenhum.
A
resposta escapou muito depressa, e agora era tarde: ele não ia
emendar. Por culpa dele o namoro podia acabar ali, se Nazaré não o
salvasse.
—
Sabe
o quê? — disse ela brincando com um botão do paletó dele. —
Você é muito sisudo. Parece um padre. Bença, monsenhor.
Ele
fingiu-se de muito indignado (era preciso fazer alguma coisa) e
empurrou a mão dela com estouvamento.
—
Você
não repete — disse ele.
Ela
aceitou o desafio com satisfação (queria brincar) e repetiu várias
vezes — Padre! Padre! Padre Pedrinho! — com o rosto esticado para
a frente, quase tocando o dele. Ele tentou pegá-la pelo braço, ela
escapuliu, sempre provocando. A perseguição entre as
jabuticabeiras, as fintas em volta de um tronco, a fuga para outro,
as gargalhadas, as ameaças. Nazaré se escondendo numa moita de
bananeira, Pedrinho procurando, encontrando. Agora que estava com ela
bem segura pelo pulso, ele não sabia o que fazer.
—
Peguei
ou não peguei?
—
Porque
eu estava cansada. Solta que você está me machucando.
Ele
soltou imediatamente. Desapontada, ela vingou-se:
—
Você
é bem mandado, não é?
Ele
agarrou-a de novo, agora pela cintura, com os dois braços. Era a
primeira vez que ficava assim tão perto de uma mulher, sozinho com
ela. E agora? O que fazer para não estragar o momento?
Nazaré
olhava para ele curiosa, ofegante, esperando. Era hora de não fazer
nada que pudesse espantá-lo. Agora não podia haver recuo. Se
houvesse, seria a derrota talvez irremediável para os dois. Que iria
ele fazer?
O
momento foi tão intenso que ela teve medo — de tudo, até de
perdê-lo — e para resistir envolveu Pedrinho pela cintura,
abraçou-o forte e escondeu o rosto no peito dele. Ficaram assim —
quietos, sofrendo, vivendo, calados.
Sabiás
cantavam nas jabuticabeiras, felizes com a fartura, enquanto mais
longe galos e galinhas se entregavam a seu namoro estridente. Um
cavalo relinchou do outro lado do rio e disparou em alegre galope
pelos pastos tingidos de sol.
Quando
Pedrinho teve serenidade bastante para sentir o cheiro do cabelo de
Nazaré — não perfume de loção ou pomada, mas cheiro de cabelo
puro — cabelo e pele e suor inocente, aquele halo que acompanha
toda mulher na véspera do amor, mergulhou o rosto no fofo dos
cabelos dela, abrindo-os instintivamente para chegar ao morno do
pescoço. Ela ajudou-o com movimentos ondulantes aconchegantes, sabia
que ele estava fazendo o certo. O aperto, a fúria, a raiva, a
pressa, os beijos urgentes, meticulosos, adivinhados; a pressa, a
fúria, o fôlego se encurtando, se acabando.
Onde
estavam? Numa moita de bananeiras, entre abelhas e folhas secas e
cheiros de quintal, debaixo de um céu festivo. Nazaré soltou
Pedrinho e pediu que ele afrouxasse o abraço, ele obedeceu,
estonteado. Ela alisou o vestido, respirou fundo, pôs ordem no
cabelo, mas sabendo que logo teria de fazer tudo isso de novo.
Ficaram
ali longo tempo calados, unidos, se reconhecendo, até que ouviram
dona Bita chamando Nazaré. Então Nazaré se lembrou que tinha ido
apanhar jabuticaba para a madrinha, e que a cuia que levara estava
ainda vazia. Pedrinho ajudou-a a achar a cuia e a enchê-la, às
pressas, sem escolher muito. Um último beijo sucinto e Nazaré subiu
para casa quase correndo. Pedrinho saiu, fechou o portão devagar,
com a meticulosidade de quem fecha uma arca, e foi envolvido por um
mundo novo, amigo.
José
J. Veiga,
in A
hora dos ruminantes
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