Passei
o dia pensando – coração meu, meu coração. Pensei e pensei
tanto que deixou de significar uma forma, um órgão, uma coisa.
Ficou só com – cor, ação – repetido, invertido – ação, cor
– sem sentido – couro, ação e não. Quis vê-lo, escapava.
Batia e rebatia, escondido no peito. Então fechei os olhos, viajei.
E como quem gira um caleidoscópio, vi:
Meu
coração é um sapo rajado, viscoso e cansado, à espera do beijo
prometido capaz de transformá-lo em príncipe.
Meu
coração é um álbum de retratos tão antigos que suas faces mal se
adivinham. Roídas de traça, amareladas de tempo, faces desfeitas,
imóveis, cristalizadas em poses rígidas para o fotógrafo
invisível. Este apertava os olhos quando sorria. Aquela tinha um
jeito peculiar de inclinar a cabeça. Eu viro as folhas, o pó resta
nos dedos, o vento sopra.
Meu
coração é um mendigo mais faminto da rua mais miserável.
Meu
coração é um ideograma desenhado a tinta lavável em papel de seda
onde caiu uma gota d’água. Olhado assim, de cima, pode ser Wu
Wang, a Inocência. Mas tão manchado que talvez seja Ming I, o
Obscurecimento da Luz. Ou qualquer um, ou qualquer outro:
indecifrável.
Meu
coração não tem forma, apenas som. Um noturno de Chopin (será o
número 5?) em que Jim Morrison colocou uma letra falando em morte,
desejo e desamparo, gravado por uma banda punk. Couro negro, prego e
piano.
Meu
coração é um bordel gótico em cujos quartos prostituem-se
ninfetas decaídas, cafetões sensuais, deusas lésbicas, anões
tarados, michês baratos, centauros gays e virgens loucas de todos os
sexos.
Meu
coração é um traço seco. Vertical, pós-moderno, coloridíssimo
de neon, gravado em fundo preto. Puro artifício, definitivo.
Meu
coração é um entardecer de verão, numa cidadezinha à beira-mar.
A brisa sopra, saiu a primeira estrela. Há moças na janela, rapazes
pela praça, tules violetas sobre os montes onde o sol se pôs. A lua
cheia brotou do mar. Os apaixonados suspiram. E se apaixonam ainda
mais.
Meu
coração é um anjo de pedra com a asa quebrada.
Meu
coração é um bar de uma única mesa, debruçado sobre a qual um
único bêbado bebe um único copo de bourbon, contemplado por um
único garçom. Ao fundo, Tom Waits geme um único verso arranhado.
Rouco, louco.
Meu
coração é um sorvete colorido de todas as cores, é saboroso de
todos os sabores. Quem dele provar será feliz para sempre.
Meu
coração é uma sala inglesa com paredes cobertas por papel de
florzinhas miúdas. Lareira acesa, poltronas fundas, macias, quadros
com gramados verdes e casas pacíficas cobertas de hera. Sobre a
renda branca da toalha de mesa, o chá repousa em porcelana da China.
No livro aberto ao lado, alguém sublinhou um verso de Sylvia Plath:
“I´m too pure for you or anyone”. Não há ninguém nessa sala
de janelas fechadas.
Meu
coração é um filme noir projetado num cinema de quinta
categoria. A plateia joga pipoca na tela e vaia a história cheia de
clichês.
Meu
coração é um deserto nuclear varrido por ventos radiativos.
Meu
coração é um cálice de cristal puríssimo transbordante de licor
de strega. Flambado, dourado. Pode-se ter visões, anunciações,
pressentimentos, ver rostos e paisagens dançando nessa chama azul de
ouro.
Meu
coração é o laboratório de um cientista louco varrido, criando
sem parar Frankensteins monstruosos que sempre acabam por destruir
tudo.
Meu
coração é uma planta carnívora morta de fome.
Meu
coração é uma velha carpideira portuguesa, coberta de preto,
cantando um fado lento e cheia de gemidos – ai de mim! ai, ai de
mim!
Meu
coração é um poço de mel, no centro de um jardim encantado,
alimentando beija-flores que, depois de prová-lo, transformam-se
magicamente em cavalos brancos alados que voam para longe, em direção
à estrela Vega. Levam junto quem me ama, me levam junto também.
Faquir
involuntário, cascata de champanha, púrpura rosa do Cairo, sapato
de sola furada, verso de Mário Quintana, vitrina vazia, navalha
afiada, figo maduro, papel crepom, cão uivando pra lua, ruína,
simulacro, varinha de incenso. Acesa, aceso – vasto, vivo: meu
coração é teu.
Caio
Fernando Abreu, in Pequenas epifanias
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