Eu
creio que todos nós, poetas e ficcionistas, não deixamos nunca de
perseguir esse caos seminal. Todos nós aspiramos regressar a essa
condição em que estivemos tão fora de um idioma que todas as
línguas eram nossas. Dito de outro modo, todos nós somos
impossíveis tradutores de sonhos. Na verdade, os sonhos falam em nós
o que nenhuma palavra sabe dizer.
O
nosso fito, como produtores de sonhos, é aceder a essa outra língua
que não é falável, essa língua cega em que todas as coisas podem
ter todos os nomes. O que a mulher doente pedia é aquilo que todos
nós queremos: anular o tempo e fazer adormecer a morte.
Talvez
se esperasse que, vindo de África, eu usasse desta tribuna para
lamentar, acusar os outros e isentar de culpas aqueles que me são
próximos. Mas eu prefiro falar de algo em que todos somos ao mesmo
tempo vítimas e culpados. Prefiro falar do modo como o mesmo
processo que empobreceu o meu continente está, afinal, castrando a
nossa condição comum e universal de criadores de histórias.
Num
congresso que celebra o valor da palavra, o tema da minha intervenção
é o modo como critérios hoje dominantes desvalorizam palavra e
pensamento em nome do lucro fácil e imediato. Falo de razões
comerciais que se fecham a outras culturas, outras línguas, outras
lógicas. A palavra de hoje é cada vez mais aquela que se despiu da
dimensão poética e que não carrega nenhuma utopia sobre um mundo
diferente.
O
que fez a espécie humana sobreviver não foi apenas a inteligência,
mas a nossa capacidade de produzir diversidade. Essa diversidade está
sendo negada nos dias de hoje por um sistema que escolhe apenas por
razões de lucro e facilidade de sucesso. Os africanos voltaram a ser
os “outros”, os que vendem pouco e os que compram ainda menos. Os
autores africanos que não escrevem em inglês (e em especial os que
escrevem em língua portuguesa) moram na periferia da periferia, lá
onde a palavra tem de lutar para não ser silêncio.
Mia
Couto, in E se Obama fosse africano?
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