segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Vivemos num mundo de imagens deterioradas

Não, as pessoas não se modificam tanto. Se à medida que envelhecemos, verificamos o quanto são diversas entre si, quanto mais aprofundamos nosso conhecimento, mais decepcionados ficamos. É que as qualidades, os traços que admirávamos antes, se são vincados posteriormente, não delineiam mais uma personalidade forte, e sim uma caricatura. (Exemplo clássico: o Barão de Charlus. Feito o retrato desde o início, Proust vincou de tal modo o seu esboço, que ele se tornou um tipo hors série, um puro monstro caricaturado. Com feroz alegria, é certo, com esse brilho e essa feérica decisão com que Beethoven atinge finalmente o apogeu de um motivo insistentemente manuseado ao longo de um dos seus grandes quartetos, mas de qualquer modo endeusado pelo grotesco e retalhado pelo excesso de suas linhas até a majestosa aparição do último volume…). Os retratos em tom natural são raros; o tempo é uma espécie de lente de aproximação que engrossa os detalhes e deforma a nitidez das linhas. Vivemos num mundo de imagens deterioradas, o que não resta dúvida, é mais do que uma simples verdade.
Lúcio Cardoso, in Diários

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