sábado, 20 de fevereiro de 2016

Uma história sutil - 2



Os dois tinham fama de grandes conhecedores de vinho e nenhum dos dois se interessava em desmentir o equívoco. Iam enganando a todos e um ao outro com sua suposta cultura enológica. Que, como se sabe, só depende de ter uma pose, duas ou três frases e uma razoável pronúncia em francês. Mas aconteceu o seguinte: os dois foram almoçar juntos. Pela primeira vez, as duas falsas autoridades se encontravam diante de pratos e — suspense — de copos vazios. Embora o motivo do almoço fosse outro, para todos os efeitos era um desafio. Qual dos dois entendia mais de vinho?
Não pediram aperitivos para não amortecer o paladar. Até aí eles sabiam. Fizeram sua escolha do cardápio. Os dois pediram carne. Depois um deles sugeriu, com estudada indiferença:
Quem sabe um vinhozinho?
Claro — disse o outro, com naturalidade. Mas suave, temendo o desmascaramento. Fez uma rápida recapitulação mental de tudo o que realmente sabia sobre vinhos. Não daria para encher um copo. Mas não podia se entregar.
Qual você prefere? — perguntou o outro, tomando a ofensiva. Também temia ser descoberto. Tinha um enorme livro sobre vinhos impresso na Suíça em 117 cores, na mesa de centro da sua sala. Era para decoração, jamais o abrira. Esperou a resposta do outro com ansiedade. O que fosse sugerido ele aceitaria em seguida. Era mais seguro. Depois, seria só uma questão de beber polidamente e fazer todos os ruídos apropriados até o fim do almoço. Mas o outro hesitou. Depois, riu e disse:
Um tinto, claro.
Claro — riu o primeiro, dando a entender que também achava graça da simulada inocência do outro. Com carne, vinho tinto. Até aí todos nós sabemos. O outro disse:
Olha, para mim qualquer tinto seco está bem. Escolha você.
O primeiro estremeceu. E agora? O maître esperava o pedido, impassível. Resolveu blefar. Era a única saída. Audácia e surpresa, e o inimigo recuaria em desordem. Inventaria um nome francês qualquer, com a pronúncia correta para intimidar o outro, e esperaria a reação.
O que acha você de um Cave de Mourville?
O outro nem piscou. Fez um ar de aprovação, mas sem muito entusiasmo. Tinha as suas dúvidas.
Não sei... O último que provei me pareceu um pouco, sei lá. Reticente. Algo contido. E um Cave de Mourville não tem o direito de ser egoísta, você não concorda?
Epa. Era preciso ter cuidado. O primeiro comeu uma azeitona para reagrupar as suas forças. Reatacou:
Você deve ter tomado um 57. Foi um péssimo ano para a região.
Não, um 62.
Impossível.
Meu caro, não precisei nem olhar o rótulo. Conheço os meus 62 de olhos fechados.
A tensão era grande. O primeiro agora sabia que o outro era um farsante. Mas não podia descartar a possibilidade de que o outro entendia mesmo do assunto, pegara o seu blefe e agora o estava testando. Virou-se gravemente para o maître e perguntou:
O Cave de Mourville de vocês, de que ano é?
Infelizmente, nosso último Cave de Mourville saiu ontem — disse o maître, outro farsante.
E os dois, aliviados, gritaram ao mesmo tempo:
Então traz uma mineral!
Luís Fernando Veríssimo, in A mesa voadora

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