segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Manoel além da razão


Jorge Luis Borges afirmou, mais de uma vez, seu desejo de se tornar um homem invisível. O filósofo catalão Rafael Argullol define a poesia como “a destilação do silêncio”. Em um dos versos das Memórias inventadas, o poeta Manoel de Barros confirma este elo essencial entre a escrita poética, o desaparecimento e a mudez: “Uso a palavra para compor meus silêncios.” Esse apego ao recolhimento é, no caso de Manoel, uma estratégia que cobiça o nada. Uma arte da meditação. Está escrito em O guardador de águas: “Não tenho bens de acontecimentos./ O que não sei fazer desconto nas palavras.”
O objetivo da poesia de Manoel de Barros não é explicar, mas “desexplicar”. Ela se desenrola além da razão e de seus bons argumentos. Por isso, provavelmente, é uma poesia que se apega à infância, momento da vida em que todos os sentidos ainda estão por se fazer. A criança tem a liberdade para cultivar uma visão torta das coisas. Seu olhar é sinuoso, e não reto. A razão — que nos fascina desde o Iluminismo — ainda é uma quimera. Nesse corajoso retorno à infância, Manoel trabalha com inversões, deslocamentos, deformações — “brincadeiras” semelhantes às dos primeiros anos de vida. Pode dizer coisas como: “O córrego ficava à beira/ de um menino...” ou “luava um pássaro”. É toda uma realidade que se inverte, libertando-se das amarras do bom senso. Não só dele, mas do valor solene e definitivo que os adultos, em geral, atribuem às palavras.
Tive a sorte de conhecer Manoel de Barros nos anos finais do século XX, em uma visita a sua casa, em Campo Grande. Espantei-me — mas depois a poesia engoliu esse espanto — com aquele homem que se encolhia e se desmentia. Imaginava um menino, encontrei um sábio, o que provavelmente é a mesma coisa. Lembro que, logo depois de me receber, ele me disse: “Não tenho nada para lhe dizer.” Não blefava, não mentia, ao contrário, levou-me a encarar a difícil verdade. A poesia de Manoel é feita de restos, de sobras, de dejetos. Como ele diz em um poema: de “inutensílios”. É uma poesia que se instala nos primórdios, quando as palavras ainda se confundem com as imagens. Ela confirma, assim, o caráter “inútil” — isto é, não pragmático, indiferente aos resultados — que a define. Como ele mesmo nos diz no Concerto a céu aberto para solos de ave: “Passei anos me procurando por lugares nenhuns./ Até que não me achei — e fui salvo.”
Estranha salvação promovida não por um encontro, mas por um desencontro. Pensava nisso quando entrei em sua casa. Não estávamos ali para nos encontrar, mas para nos desencontrar. Não era uma entrevista, mas uma meditação. Admito que, a princípio, me senti perdido, mas logo me lembrei dos versos em que Manoel fala das vantagens de se perder. Elogia também os defeitos, os desvios e o desprezível. De seu personagem Bernardo, ele diz que “desregula a natureza”. Eu não estava ali para entrevistar um poeta, mas para me perder em suas palavras.
Está dito no Livro sobre nada: “A sensatez me absurda.” Por isso, talvez, alguns intelectuais sisudos, inseguros, dele se afastem e até neguem sua grandeza. Nada disso o importunava. Dizia Manoel ter aprendido com o pintor boliviano Rômulo Quiroga que a força de um artista não vem de seus sucessos, mas de suas derrotas. É ali onde a arte falha — em pleno silêncio aterrador — que a poesia nasce. Quando pensei em suas palavras, perdi o medo de errar. Ao contrário: entendi que só errando me aproximaria de um poeta e de uma poesia que se definem pela desfiguração. Mesmo com os cabelos brancos, Manoel ainda vivia uma infância na qual “não havia limites para ser”.
Preferia as ciências “que analfabetam”. Orgulhava-se, também, de seu senso apurado “de irresponsabilidades”. No Tratado geral das grandezas do ínfimo, ele escreve: “Meu fado é o de não saber quase tudo.” Toma uma posição oposta à dos poetas sabichões, para quem a contradição é intolerável. Sabia, ao contrário, que a realidade é feita de lados divergentes. De difíceis paradoxos. É uma esfera que, em seu centro, sustenta a ignorância. Em Menino do mato, ele nos diz: “Certas visões não significavam nada mas eram passeios verbais.” Sua poesia não está só além dos significados: ela os desmonta. Aquele homem sereno não tinha medo de enlouquecer. Ao contrário: sabia que, sem uma dose de desrazão, não se consegue fazer arte. Em O livro das ignorãças ele afirma: “No descomeço era o verbo./ Só depois é que veio o delírio do verbo.”
O apego ao silêncio era uma forma que Manoel encontrava para ir além das palavras. Repetia um pouco Clarice Lispector, que escrevia para chegar “atrás de detrás dos pensamentos”. Ambos foram desbravadores, e isso os envolveu no manto da desconfiança. Na verdade: dá medo. Lembro que nossa conversa transcorreu com muitos silêncios — lacunas que, contudo, em vez de desmanchá-la, a fortaleceu. Alguém consegue pensar em uma partitura musical desprovida de pausas? Pois o vazio ocupa lugar central na poesia de Manoel. Sua escrita errante e tortuosa dele se alimenta. “Sou mais a palavra com febre”, escreve nos Arranjos para assobio. Também não temeu a sujeira — que, aliás, desde as primeiras fraldas, define o humano: “O que é bom para o lixo é bom para a poesia”, recomenda em Matéria de poesia.
Por tudo isso, o encontro com a poesia de Manoel de Barros promovido por esta antologia se torna, ao mesmo tempo, um desencontro. O leitor se desencontra consigo mesmo e com tudo o que aprendeu: eis a poesia. O leitor tropeça no desconhecido e, ao se mirar no espelho das palavras, se desconhece: a poesia de novo. Devo admitir que deixei Campo Grande um tanto atordoado. Mas, de fato: é o mesmo atordoamento, o mesmo abalo que a leitura da poesia de Manoel provoca. É porque erra — também no sentido de andar sem rumo — que ela acerta. Manoel nunca temeu afirmar que o nome empobrece a imagem. Que a palavra a diminui e prende. Ainda assim, a palavra é tudo o que um poeta tem. Aceitando seu destino, escreveu: “Com esses exercícios os nossos/ desconhecimentos aumentaram bem.”
José Castello, in Prefácio do livro Meu quintal é maior do que o mundo

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