Jorge
Luis Borges afirmou, mais de uma vez, seu desejo de se tornar um
homem invisível. O filósofo catalão Rafael Argullol define a
poesia como “a destilação do silêncio”. Em um dos versos das
Memórias inventadas, o poeta Manoel de Barros confirma este elo
essencial entre a escrita poética, o desaparecimento e a mudez: “Uso
a palavra para compor meus silêncios.” Esse apego ao recolhimento
é, no caso de Manoel, uma estratégia que cobiça o nada. Uma arte
da meditação. Está escrito em O guardador de águas: “Não tenho
bens de acontecimentos./ O que não sei fazer desconto nas palavras.”
O
objetivo da poesia de Manoel de Barros não é explicar, mas
“desexplicar”. Ela se desenrola além da razão e de seus bons
argumentos. Por isso, provavelmente, é uma poesia que se apega à
infância, momento da vida em que todos os sentidos ainda estão por
se fazer. A criança tem a liberdade para cultivar uma visão torta
das coisas. Seu olhar é sinuoso, e não reto. A razão — que nos
fascina desde o Iluminismo — ainda é uma quimera. Nesse corajoso
retorno à infância, Manoel trabalha com inversões, deslocamentos,
deformações — “brincadeiras” semelhantes às dos primeiros
anos de vida. Pode dizer coisas como: “O córrego ficava à beira/
de um menino...” ou “luava um pássaro”. É toda uma realidade
que se inverte, libertando-se das amarras do bom senso. Não só
dele, mas do valor solene e definitivo que os adultos, em geral,
atribuem às palavras.
Tive
a sorte de conhecer Manoel de Barros nos anos finais do século XX,
em uma visita a sua casa, em Campo Grande. Espantei-me — mas depois
a poesia engoliu esse espanto — com aquele homem que se encolhia e
se desmentia. Imaginava um menino, encontrei um sábio, o que
provavelmente é a mesma coisa. Lembro que, logo depois de me
receber, ele me disse: “Não tenho nada para lhe dizer.” Não
blefava, não mentia, ao contrário, levou-me a encarar a difícil
verdade. A poesia de Manoel é feita de restos, de sobras, de
dejetos. Como ele diz em um poema: de “inutensílios”. É uma
poesia que se instala nos primórdios, quando as palavras ainda se
confundem com as imagens. Ela confirma, assim, o caráter “inútil”
— isto é, não pragmático, indiferente aos resultados — que a
define. Como ele mesmo nos diz no Concerto a céu aberto para solos
de ave: “Passei anos me procurando por lugares nenhuns./ Até que
não me achei — e fui salvo.”
Estranha
salvação promovida não por um encontro, mas por um desencontro.
Pensava nisso quando entrei em sua casa. Não estávamos ali para nos
encontrar, mas para nos desencontrar. Não era uma entrevista, mas
uma meditação. Admito que, a princípio, me senti perdido, mas logo
me lembrei dos versos em que Manoel fala das vantagens de se perder.
Elogia também os defeitos, os desvios e o desprezível. De seu
personagem Bernardo, ele diz que “desregula a natureza”. Eu não
estava ali para entrevistar um poeta, mas para me perder em suas
palavras.
Está
dito no Livro sobre nada: “A sensatez me absurda.” Por isso,
talvez, alguns intelectuais sisudos, inseguros, dele se afastem e até
neguem sua grandeza. Nada disso o importunava. Dizia Manoel ter
aprendido com o pintor boliviano Rômulo Quiroga que a força de um
artista não vem de seus sucessos, mas de suas derrotas. É ali onde
a arte falha — em pleno silêncio aterrador — que a poesia nasce.
Quando pensei em suas palavras, perdi o medo de errar. Ao contrário:
entendi que só errando me aproximaria de um poeta e de uma poesia
que se definem pela desfiguração. Mesmo com os cabelos brancos,
Manoel ainda vivia uma infância na qual “não havia limites para
ser”.
Preferia
as ciências “que analfabetam”. Orgulhava-se, também, de seu
senso apurado “de irresponsabilidades”. No Tratado geral das
grandezas do ínfimo, ele escreve: “Meu fado é o de não saber
quase tudo.” Toma uma posição oposta à dos poetas sabichões,
para quem a contradição é intolerável. Sabia, ao contrário, que
a realidade é feita de lados divergentes. De difíceis paradoxos. É
uma esfera que, em seu centro, sustenta a ignorância. Em Menino do
mato, ele nos diz: “Certas visões não significavam nada mas eram
passeios verbais.” Sua poesia não está só além dos
significados: ela os desmonta. Aquele homem sereno não tinha medo de
enlouquecer. Ao contrário: sabia que, sem uma dose de desrazão, não
se consegue fazer arte. Em O livro das ignorãças ele afirma: “No
descomeço era o verbo./ Só depois é que veio o delírio do verbo.”
O
apego ao silêncio era uma forma que Manoel encontrava para ir além
das palavras. Repetia um pouco Clarice Lispector, que escrevia para
chegar “atrás de detrás dos pensamentos”. Ambos foram
desbravadores, e isso os envolveu no manto da desconfiança. Na
verdade: dá medo. Lembro que nossa conversa transcorreu com muitos
silêncios — lacunas que, contudo, em vez de desmanchá-la, a
fortaleceu. Alguém consegue pensar em uma partitura musical
desprovida de pausas? Pois o vazio ocupa lugar central na poesia de
Manoel. Sua escrita errante e tortuosa dele se alimenta. “Sou mais
a palavra com febre”, escreve nos Arranjos para assobio. Também
não temeu a sujeira — que, aliás, desde as primeiras fraldas,
define o humano: “O que é bom para o lixo é bom para a poesia”,
recomenda em Matéria de poesia.
Por
tudo isso, o encontro com a poesia de Manoel de Barros promovido por
esta antologia se torna, ao mesmo tempo, um desencontro. O leitor se
desencontra consigo mesmo e com tudo o que aprendeu: eis a poesia. O
leitor tropeça no desconhecido e, ao se mirar no espelho das
palavras, se desconhece: a poesia de novo. Devo admitir que deixei
Campo Grande um tanto atordoado. Mas, de fato: é o mesmo
atordoamento, o mesmo abalo que a leitura da poesia de Manoel
provoca. É porque erra — também no sentido de andar sem rumo —
que ela acerta. Manoel nunca temeu afirmar que o nome empobrece a
imagem. Que a palavra a diminui e prende. Ainda assim, a palavra é
tudo o que um poeta tem. Aceitando seu destino, escreveu: “Com
esses exercícios os nossos/ desconhecimentos aumentaram bem.”
José
Castello, in Prefácio do livro Meu quintal é maior do que o mundo
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