Fotograma do filme
Procurou
onde sentar. Tudo que havia, além do catre, era um caixão de
querosene vazio. Vanda o pôs de pé, soprou a poeira, sentou-se.
Quanto tempo demoraria o médico a chegar? E Leonardo? Imaginou o
marido cheio de dedos na Repartição, explicando ao chefe a
inesperada morte do sogro. O chefe de Leonardo conhecera Joaquim nos
bons tempos da Mesa de Rendas. E quem não o conhecera então, quem
não lhe tinha consideração, quem poderia imaginar o seu destino?
Para Leonardo seriam momentos difíceis, comentando com o chefe as
loucuras do velho, buscando explicação para elas. O pior seria se a
notícia se espalhasse entre os colegas, murmurada de mesa em mesa,
enchendo as bocas de risinhos maledicentes, de piadas grosseiras, de
comentários de mau gosto. Era uma cruz aquele pai, transformara suas
vidas num calvário, estavam agora no cimo do morro, era ter um pouco
mais de paciência. Com o rabo do olho, Vanda espiou o morto. Lá
estava ele sorrindo, achando tudo aquilo infinitamente engraçado.
É
pecado ter raiva de um morto, ainda mais se esse morto é o pai da
gente. Vanda conteve-se, era pessoa religiosa, frequentava a igreja
do Bonfim, um pouco espírita também, acreditava na reencarnação.
Além do mais, agora pouco importava o sorriso de Quincas. Era ela
finalmente quem mandava e dentro em pouco ele voltaria a ser o pacato
Joaquim Soares da Cunha, irrepreensível cidadão.
O
santeiro entrou com o médico, rapaz jovem, certamente recém-formado
pois ainda se dava ao trabalho de representar o profissional
competente. O santeiro apontou o morto, o médico cumprimentou Vanda,
abriu a maleta de couro brilhante. Vanda levantou-se, afastando o
caixão de querosene.
– De
que morreu?
Foi
o santeiro quem explicou:
– Foi
encontrado morto, assim como está.
–
Sofria alguma enfermidade?
– Não
sei, não senhor. Conheço ele há uns dez anos e sempre sadio como
um boi. A não ser que o doutor...
– O
quê?
–
...chame cachaça de doença. Virava um
bocado, era bom no trago. Vanda tossiu, repreensiva. O doutor
dirigiu-se a ela:
– Era
empregado da senhora?
Houve
um silêncio breve e pesado. A voz veio de longe:
– Era
meu pai.
Doutor
jovem, ainda sem experiência da vida. Mediu Vanda, seu vestido de
dia de festa, sua limpeza, os sapatos altos. Espiou o morto de
pobreza sem medida, o quarto de desmedida miséria.
– E
ele vivia aqui?
–
Fizemos tudo para que voltasse para casa.
Era...
–
Maluco?
Vanda
abriu os braços, estava com vontade de chorar. O médico não
insistiu. Sentou-se na beira da cama, começou o exame. Suspendeu a
cabeça e disse:
– Ele
está rindo, hein! Cara de debochado.
Vanda
fechou os olhos, apertou as mãos, o rosto vermelho de vergonha.
Jorge
Amado, in A morte e a morte de Quincas Berro D'água
Nenhum comentário:
Postar um comentário