Alguns
escritores entram na vida da gente com estardalhaço, arrancam
portas, destroem preconceitos, iluminam regiões obscuras de nossa
consciência com o poder das tempestades. Outros se instalam aos
poucos, como se nos visitassem e a cada visita fossem demorando-se um
pouco mais. Em lugar dos raios, trazem uma lâmpada de querosene, ou
uma vela.
Friedrich
Nietzsche invadiu minha adolescência com violência, estraçalhou
minha fé romântica e messiânica. Mas passou, como um vento do
Norte, e trouxe depois a longa chuva da melancolia. Dos escombros da
fé, tratei de salvar um jeito enviesado de observar o mundo, em que
misturo um niilismo reticente a um misticismo inócuo. Penso que o
Nada é o destino final de todo o Universo, mas não deixo de parar,
de vez em quando, em algumas estalagens que vendem ilusões de
eternidade. Saio delas como o turista experimentado, consciente de
ter comprado quinquilharias, mas e daí? Nas noites borrascosas, seu
brilho falso sobre a cômoda será uma presença, e uma saudade.
Li
Albert Camus na mesma época, imberbe, insciente da trapaça, do
sabor do corpo, da satisfação do torna-viagem. Não houve espanto,
mas uma ternura morna, mais uma simpatia que uma admiração. Seu
estilo sóbrio e contido não encontrou eco nos meus arroubos, eu
queria conhecer horizontes sombrios, como os de Dostoiévski,
heroicos como os de Tolstói, delirantes como os de Edgar Allan Poe.
Depois,
minhas ilusões foram se perdendo, e o argelino retornou, com um
cigarro e um sorriso cínico nos lábios, a ofertar-me A queda, A
peste, O estrangeiro. E descobri que era aquele o tom, o ritmo, a
ambientação que eu gostaria de ter imprimido aos meus próprios
textos. Como reconhecimento, coloquei o mesmo sol que bate na navalha
do árabe assassinado por Meursault na foice que meu sem-terra
empunha no centro da praça, em Porto Alegre, em Quem faz gemer a
terra. Dois estrangeiros, sob um mesmo sol indiferente.
Só
agora, quando o frio já começa a se aninhar nos meus ossos,
descubro a coletânea de ensaios A inteligência e o cadafalso. Eu já
conhecia O avesso e o direito, O homem revoltado, O mito de Sísifo,
entre outras obras do desconfiado da vida. Reencontro a simplicidade
profunda, cristalina, de que só são capazes aqueles escritores que
não se deixam turvar pelos modismos e pelo desejo de parecer o que
não são. O ensaio em que Albert Camus homenageia seu professor e
mestre, Jean Grenier, é comovente. A descoberta da arte como um novo
nascimento. “Uma frase se destaca do livro aberto, uma palavra
ressoa ainda no cômodo, e de repente, em torno da palavra certa, da
nota exata, as contradições se ordenam, a desordem deixa de
existir. Ao mesmo tempo e já, como resposta a esta linguagem
perfeita, um canto tímido, mais inábil, eleva-se na escuridão do
ser.”
Por
um instante, sinto-me feliz, responsável, artista. Em algum lugar,
um jovem lerá este texto e sentirá dentro de si uma angústia, um
sufoco, um ritmo, uma melodia. E um desejo insuperável de expressão.
Na escuridão de seu ser, mais uma vez, o fogo sagrado elevará sua
chama.
Charles
Kiefer, in Para ser escritor
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