domingo, 31 de janeiro de 2016

O fogo sagrado

Alguns escritores entram na vida da gente com estardalhaço, arrancam portas, destroem preconceitos, iluminam regiões obscuras de nossa consciência com o poder das tempestades. Outros se instalam aos poucos, como se nos visitassem e a cada visita fossem demorando-se um pouco mais. Em lugar dos raios, trazem uma lâmpada de querosene, ou uma vela.
Friedrich Nietzsche invadiu minha adolescência com violência, estraçalhou minha fé romântica e messiânica. Mas passou, como um vento do Norte, e trouxe depois a longa chuva da melancolia. Dos escombros da fé, tratei de salvar um jeito enviesado de observar o mundo, em que misturo um niilismo reticente a um misticismo inócuo. Penso que o Nada é o destino final de todo o Universo, mas não deixo de parar, de vez em quando, em algumas estalagens que vendem ilusões de eternidade. Saio delas como o turista experimentado, consciente de ter comprado quinquilharias, mas e daí? Nas noites borrascosas, seu brilho falso sobre a cômoda será uma presença, e uma saudade.
Li Albert Camus na mesma época, imberbe, insciente da trapaça, do sabor do corpo, da satisfação do torna-viagem. Não houve espanto, mas uma ternura morna, mais uma simpatia que uma admiração. Seu estilo sóbrio e contido não encontrou eco nos meus arroubos, eu queria conhecer horizontes sombrios, como os de Dostoiévski, heroicos como os de Tolstói, delirantes como os de Edgar Allan Poe.
Depois, minhas ilusões foram se perdendo, e o argelino retornou, com um cigarro e um sorriso cínico nos lábios, a ofertar-me A queda, A peste, O estrangeiro. E descobri que era aquele o tom, o ritmo, a ambientação que eu gostaria de ter imprimido aos meus próprios textos. Como reconhecimento, coloquei o mesmo sol que bate na navalha do árabe assassinado por Meursault na foice que meu sem-terra empunha no centro da praça, em Porto Alegre, em Quem faz gemer a terra. Dois estrangeiros, sob um mesmo sol indiferente.
Só agora, quando o frio já começa a se aninhar nos meus ossos, descubro a coletânea de ensaios A inteligência e o cadafalso. Eu já conhecia O avesso e o direito, O homem revoltado, O mito de Sísifo, entre outras obras do desconfiado da vida. Reencontro a simplicidade profunda, cristalina, de que só são capazes aqueles escritores que não se deixam turvar pelos modismos e pelo desejo de parecer o que não são. O ensaio em que Albert Camus homenageia seu professor e mestre, Jean Grenier, é comovente. A descoberta da arte como um novo nascimento. “Uma frase se destaca do livro aberto, uma palavra ressoa ainda no cômodo, e de repente, em torno da palavra certa, da nota exata, as contradições se ordenam, a desordem deixa de existir. Ao mesmo tempo e já, como resposta a esta linguagem perfeita, um canto tímido, mais inábil, eleva-se na escuridão do ser.”
Por um instante, sinto-me feliz, responsável, artista. Em algum lugar, um jovem lerá este texto e sentirá dentro de si uma angústia, um sufoco, um ritmo, uma melodia. E um desejo insuperável de expressão. Na escuridão de seu ser, mais uma vez, o fogo sagrado elevará sua chama.
Charles Kiefer, in Para ser escritor

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