quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

Canino

Ando triste por umas coisas. Não no sentido literário. Minha literatura anda bem. Nunca fui tão lido e tão pobre. Hoje saí de madrugada e parei num barzinho 24 horas e comprei uma garrafa de conhaque seresteiro. Fiquei na minha. Calado. Às vezes é bom ficar calado. É como limpar as lentes do binóculo. Calado as coisas se desenham melhor. E foi o que fiz. Sentei na última mesa e fiquei bebendo na manha até uma porrada se instalar e tirar a minha paz. Não me manifestei. Só observei os socos e pontapés. Aí o tempo passou. A claridade começou a estuprar as janelas e na hora de amarrar os cadarços e dar o fora, um dente, Isso mesmo. Vejo um canino intacto perto de mim. Peguei o bicho. Limpei o sangue e guardei no bolso e saí caminhando assobiando uma canção do Tom Zé. Aquela que fala da “menina Jesus”. Uma linda canção. Lirismo puro. Aí antes de acender meu último cigarro, vejo o cara que apanhou na briga chorando sentado no banco da parada de ônibus: “E agora, Jesus? Minha mulher vai me expulsar de casa. Ele não vai aguentar um bêbado banguela”. Tiro o dente do bolso e falo pra ele: “Calma. Taqui teu dente, cara. Um implante custa 800 reais em qualquer consultório dentário. Chega em casa e dá um beijo na testa dela”. O cara abriu um sorriso com os lábios inchados e me deu um abraço demorado. Deus deve ter aberto um sorriso também. A alma de Deus não tem dentes.
Diego Moraes, in ursocongelado.tumblr.com

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