sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

Só para loucos (trecho)

O dia passara como normalmente passam os dias: eu o havia desperdiçado, dissipado suavemente, com minha primitiva e arredia maneira de ser; trabalhara algumas horas a compulsar velhos livros e sentira dores durante duas horas seguidas, como os velhos costumam sentir; engolira uns pós e me alegrara porque as dores se haviam deixado enganar; metera-me num banho quente e absorvera o agradável calor; recebera três vezes o correio e correra a vista pelas cartas e os impressos sem importância; fizera meus exercícios respiratórios, mas achara conveniente transferir para outro dia os exercícios mentais; dera um passeio de uma hora e vira, recortados contra o céu, delicadas e belas amostras de cirros preciosos. Agradável, assim como ler os livros antigos ou demorar-me no banho quente, mas, afinal de contas, não fora a bem dizer um dia encantador, nem brilhante, nem feliz, nem plácido, mas tão somente um desses dias como desde algum tempo costumam ser os normais de minha vida: moderadamente agradáveis, totalmente suportáveis, toleráveis, tépidos dias de um velho e descontente senhor, dias sem dores particulares, sem singulares preocupações, sem aflições especiais, sem desesperos, dias em que até mesmo a pergunta, de que se não seria o momento de seguir o exemplo de Adalbert Stifter e degolar-se com a navalha de barbear, era meditada tranquilamente sem emoção, sem qualquer sentimento de angústia. Quem havia passado pelos outros dias, aqueles terríveis de ataque de gota, das dores malignas por detrás dos globos oculares, transformando a alegria de ver e de ouvir num tormento alucinante sob os efeitos da enlouquecedora enxaqueca, ou aqueles dias de morte da alma, perversos de vazio interior e desespero, nos quais em meio à terra destroçada e ressequida pelas sociedades anônimas, o mundo dos homens e a chamada cultura ri-se de nós a cada passo com seu enganoso e vulgar esplendor de feira e nos atormenta com uma persistência emética, e quando tudo está concentrado e levado ao clímax do insuportável dentro de nosso próprio ser enfermo, — quem já havia passado por aqueles dias infernais mostrava-se bem contente com estes de agora, normais e vulgares, em que se sentava agradecido junto à estufa a ler os jornais, verificando satisfeito que não estalara nenhuma nova guerra, que não surgira nenhuma nova ditadura, que não se descobrira nenhum nauseante escândalo no mundo da política e das finanças, e podia planger agradecido as cordas de sua empoeirada lira para entoar um salmo de graças em tom moderado, suportavelmente alegre, quase regozijante, com o qual aborrecerá seu calado e tranquilo semideus, um tanto anestesiado pelo brometo, e no morno ar desse contente aborrecimento, dessa ausência de dor tão digna de nota, o semideus solitário e o semideus um tanto encanecido que cantava o saí-mo incolor pareciam gêmeos. Muito se teria de dizer sobre esse contentamento e essa ausência de dor, sobre esses dias suportáveis e submissos, nos quais nem o sofrimento nem o prazer se manifestam, em que tudo apenas murmura e parece andar nas pontas dos pés. Mas o pior de tudo é que tal contentamento é exatamente o que não posso suportar. Após um curto instante parece-me odioso e repugnante. Então, desesperado, tenho de escapar a outras regiões, se possível a caminho do prazer, se não, a caminho da dor.”
Hermann Hesse, in O lobo da estepe

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