terça-feira, 29 de dezembro de 2015

O pensamento lógico como salvo-conduto

Quando Nina completou cinco anos de idade seu pai lhe ensinou a jogar xadrez. Não que esperasse fazer dela um daqueles gênios russos que passam a vida diante de um tabuleiro, não, sua intenção era outra, menos concreta e, talvez, bem mais difícil de ser alcançada. O xadrez, de forma lúdica e simples, a ajudaria a compreender os rudimentos daquilo que, segundo as palavras do pai, seria o seu mais valioso legado: o pensamento lógico. Veja bem, ele dizia, este é o peão, o peão só é capaz de andar uma casa para a frente, a não ser na primeira jogada, que permite um deslocamento de duas casas, agora, para capturar alguma peça, você o movimenta na diagonal, entendeu? Ela fazia que sim com a cabeça, ele continuava, já o bispo se movimenta somente na diagonal, podendo deslocar-se quantas casas o jogo lhe permitir, está claro?, ela continuava concordando, apesar de intuir que sua compreensão das peças e respectivas funções manteria para sempre algumas inconsistências fundamentais.
Para o pai de Nina, o pensamento lógico era uma espécie de salvo-conduto. É que ele, homem racional e sistemático, sempre esteve convencido de que as mulheres, devido aos hormônios ou algum outro aspecto misterioso de sua constituição, teriam uma clara tendência à loucura e a todo tipo de irracionalidade. Tratava-se, assim, de uma educação profilática. Além da loucura (ataques de choro, desmaios, chiliques), deveria prevenir todo tipo de fraqueza teórico-existencial: esoterismos, crendices, rezas, possessões, e qualquer outra manifestação de religiosidade. E o currículo incluía não apenas o xadrez, mas também aulas de lógica, evolução, cosmologia, história antiga e noções de filosofia. Sem falar no vigoroso treinamento físico (mens sana in corpore sano), que consistia em longas caminhadas na areia da praia e exercícios de natação em alto-mar.
A lógica, porém, não era a única preocupação, havia o que talvez fosse o maior interesse de seu pai: a ciência. A ciência explicaria e salvaria o mundo de todos os males: da miséria, da loucura, dos terremotos, da crise econômica, das ditaduras, e principalmente da ignorância. Nina era capaz de lembrar com detalhes o dia em que ele, decidido a iniciar de forma abrangente e sistemática a sua educação científica, apareceu trazendo a enciclopédia Mirador. Eram vinte volumes, acompanhados de dois dicionários e uma bíblia. Num primeiro impulso pensou em descartar imediatamente a bíblia, contudo, depois de alguns minutos de reflexão, concluiu que talvez fosse bom mantê-la em casa, assim vigiariam o inimigo de perto, consultariam suas incoerências e poderiam, depois, com conhecimento de causa, reduzi-lo a cinzas numa série de argumentações irrefutáveis.
A partir de então, todos os dias, quando chegava do trabalho, e antes do jantar, sentava-se com a filha à mesa e dizia, muito bem, vejamos o que a Mirador nos reserva para o dia de hoje. A Mirador era bastante eclética, e lhes reservava os temas mais variados, Grécia antiga, sociolinguística, Guerras Napoleônicas, evolução dos mamíferos, o Big Bang. Com o primeiro volume da enciclopédia aberto em cima da mesa, ele explicava: o universo não é criação de um ser superior ou divino, como gostariam os religiosos, mas apenas uma massa que surgiu do nada. O universo é uma massa, ele repete, e faz uma pausa diante da cara de espanto de Nina, talvez para realçar a importância do que dizia. Originalmente muito densa, com temperaturas inimagináveis, que com o passar do tempo foi perdendo calor, e, por isso, se expandindo. Não um universo estático criado em seis ou sete dias, mas um universo em constante expansão, aliás, o universo continua se expandindo, e em algum momento se extinguirá. Nessa altura do discurso, Nina lançava-lhe um olhar apreensivo, o que seria deles, da casa, do cachorro, e até mesmo das enciclopédias Mirador quando o universo se extinguisse. Bom, quando isso acontecer, a humanidade já terá desaparecido da face da Terra há bilhões de anos. Estaremos todos no céu?, Nina sugeria não muito segura da sua hipótese, o pai dava uma gargalhada, claro que não, que ideia mais absurda, não existe céu. Não?, as palavras saíam num fiozinho de voz. Claro que não, isso é coisa de gente ignorante, de quem tem medo de aceitar as coisas como são, a gente morre e acabou, pronto, não há nada depois, nem corpo, nem pensamento, nem céu, nem inferno, nem Jesus Cristo, nem madre Teresa de Calcutá. Não há nada. Absolutamente nada. A gente morre e fim.
Carola Saavedra, in O inventário das coisas ausentes

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