quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

O lacrau

Durmo, por hábito, por imposição genética, porque a luminosidade me incomoda, o dia inteiro. Às vezes, porém, alguma coisa me desperta, um ruído, um raio de sol, e sou forçado a atravessar o desconforto do dia, correndo pelas paredes, até encontrar uma fenda mais profunda, algum interstício úmido e fundo onde, de novo, possa repousar. Não sei porque acordei esta manhã. Creio que sonhava com algo severo (não me recordo de rostos, só de sentimentos). Talvez tenha sonhado com o meu pai. No instante em que abri os olhos vi o lacrau. Estava a poucos centímetros de mim. Imóvel. Fechado numa couraça de ódio como um guerreiro medieval na sua armadura. Então caiu sobre mim. Saltei para trás e subi pela parede, num relâmpago, até alcançar o tecto. Ouvi nitidamente, continuo a ouvir, a pancada seca do ferrão a bater contra o soalho.
Recordo-me de uma frase dita pelo meu pai numa noite em que festejava – com falsa alegria, quero crer – a morte de um desafeto:
Era mau e ignorava-o. Nem sabia o que era a maldade. Ou seja: era absolutamente mau.”
Foi o que senti no exato instante em que abri os olhos e vi o lacrau.
José Eduardo Agualusa, in O vendedor de passados

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