Durmo,
por hábito, por imposição genética, porque a luminosidade me
incomoda, o dia inteiro. Às vezes, porém, alguma coisa me desperta,
um ruído, um raio de sol, e sou forçado a atravessar o desconforto
do dia, correndo pelas paredes, até encontrar uma fenda mais
profunda, algum interstício úmido e fundo onde, de novo, possa
repousar. Não sei porque acordei esta manhã. Creio que sonhava com
algo severo (não me recordo de rostos, só de sentimentos). Talvez
tenha sonhado com o meu pai. No instante em que abri os olhos vi o
lacrau. Estava a poucos centímetros de mim. Imóvel. Fechado numa
couraça de ódio como um guerreiro medieval na sua armadura. Então
caiu sobre mim. Saltei para trás e subi pela parede, num relâmpago,
até alcançar o tecto. Ouvi nitidamente, continuo a ouvir, a pancada
seca do ferrão a bater contra o soalho.
Recordo-me
de uma frase dita pelo meu pai numa noite em que festejava – com
falsa alegria, quero crer – a morte de um desafeto:
“Era
mau e ignorava-o. Nem sabia o que era a maldade. Ou seja: era
absolutamente mau.”
Foi
o que senti no exato instante em que abri os olhos e vi o lacrau.
José
Eduardo Agualusa,
in O
vendedor de passados
Nenhum comentário:
Postar um comentário