sábado, 12 de dezembro de 2015

No corpo do texto

Era preciso humanizar os ‘oriundi’, sentia Talese. Nada melhor que mostrar que Sinatra — Sinatra! — ficava resfriado


O melhor que um bom jornalista pode almejar é escrever algo que forneça uma nota de rodapé à biografia do seu personagem. Porém, há exceções. Reportagens tão esclarecedoras que se incorporam ao texto principal talvez até rendam um capítulo. A mais notável foi o trabalho de Carl Bernstein e Bob Woodward, no “Washington Post”, que conduziu à renúncia do então presidente dos EUA, Richard Nixon, em 1974.
Amanhã, dia 12, o mundo celebrará o centenário de Frank Sinatra, um dos melhores cantores que já se ouviu. Modestamente, os jornalistas estaremos celebrando o cinquentenário da apuração que Gay Talese realizou em torno do aniversário de 50 anos de Sinatra. Desde então, é impossível apreender o cantor — ou aprender jornalismo — sem passar pelo perfil publicado na revista “Esquire” na edição de abril de 1966.
No final de 1965, Talese tinha 33 anos. Saíra do “New York Times”, entre outras razões, porque sentia que havia histórias inalcançáveis pelo onipresente lide (“Quem? O quê? Quando? Onde? Como? Por quê?”, tudo respondido nas primeiras linhas de um texto). A técnica era, e ainda é, lá como cá, útil para informar de chofre o leitor sobre o que acabou de acontecer. Mas e se nada está exatamente acontecendo?
A pauta na “Esquire” tinha a banalidade das efemérides: Sinatra estava fazendo 50 anos. E daí? Tivesse sido designada para olhos, ouvidos e mãos menos hábeis que os de Talese, veríamos publicado um perfil protocolar. Ok, o homem cuja voz — The Voice, que jamais seria selecionada num programa homônimo de TV porque nunca, nunca berrou ao microfone — embalara as relações sociais e sexuais de duas gerações de americanos estava dobrando o Cabo da Boa Esperança (morreria aos 82 anos, em 1998).
Talese foi beneficiado pelo que a muitos repórteres pareceria um infortúnio incontornável: Sinatra não estava disposto a falar com ele. Passou cinco semanas entrevistando dezenas de membros do séquito do cantor — inclusive a senhora que carregava a mochila com suas 60 perucas — e outras seis organizando a apuração e escrevendo 55 laudas para a “Esquire”. No Brasil, o resultado está publicado pela Companhia das Letras com uma dúzia de outros textos dele em “Fama & anonimato”.
Sinatra não quis conversar com Talese porque estava furioso com a fofocada em torno de seu namoro com a atriz Mia Farrow, então com 20 aninhos; porque estava preocupado com um iminente especial da CBS que falaria de sua vida privada e, dizia-se, de suas ligações com a máfia; e, last but not least, porque em breve teria de gravar 18 canções para um especial da NBC e estava resfriado. Talese percebeu que a mais comum das doenças assumia, em se tratando de Sinatra, uma dimensão apocalíptica. O repórter escreveria: “Frank Sinatra está resfriado. Sinatra resfriado é Picasso sem tinta, Ferrari sem combustível — só que pior”. Seu editor na revista, Harold Hayes, teve a sensibilidade de alçar a primeira dessas frases a título. Estava criado um clássico.
Sinatra não quis conversar com Talese, mas tacitamente admitiu que até a sua mamma, Natalina “Dolly” Garaventa, falasse ao repórter sobre a marca das suas cuecas. Isto não é pouca coisa. Não pelas cuecas. Pela mamma. Sinatra era apegado às coisas da Itália onde seus pais haviam nascido. Os pais de Talese também tinham vindo da Itália. Ele também era de Nova Jersey. E também se vestia com extremo apuro. Um se enxergava no outro. Era preciso humanizar os oriundi, sentia Talese. Nada melhor que mostrar que Sinatra — Sinatra! — ficava resfriado. Sem escarafunchar suas conexões mafiosas, mas sem deixar de mencioná-las no texto. Il Padrone, está lá.
Hoje com 83 anos, Talese desconfia da expressão “Jornalismo literário”, associada a obras suas e de contemporâneos como Truman Capote e Tom Wolfe. Acha que sugere invenção demais e apuração de menos, desculpa para repórteres preguiçosos. O incansável Talese — capaz de passar um jantar inteiro crivando seus comensais de perguntas, mesmo sem nenhuma apuração específica em vista — sempre gostou de cobrir esportes. Quando perguntado o porquê, logo ele que fez “o” perfil de Sinatra, responde que é porque os esportes dizem respeito mais a perdedores do que a vencedores.
No texto de Talese para a “Esquire”, o maravilhoso e bem-sucedido cantor ítalo-americano não chega a ser um perdedor, mas se assemelha a um boxeador tentando recuperar o fôlego no seu canto do ringue, cansado da sequência de jabes que o mundo acabou de lhe desferir, sem conseguir falar, a respiração tornada curta por um resfriado.
Arthur Dapieve, in www.oglobo.com.br

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