Era preciso
humanizar os ‘oriundi’, sentia Talese. Nada melhor que mostrar
que Sinatra — Sinatra! — ficava resfriado
O
melhor que um bom jornalista pode almejar é escrever algo que
forneça uma nota de rodapé à biografia do seu personagem. Porém,
há exceções. Reportagens tão esclarecedoras que se incorporam ao
texto principal talvez até rendam um capítulo. A mais notável foi
o trabalho de Carl Bernstein e Bob Woodward, no “Washington Post”,
que conduziu à renúncia do então presidente dos EUA, Richard
Nixon, em 1974.
Amanhã,
dia 12, o mundo celebrará o centenário de Frank Sinatra, um dos
melhores cantores que já se ouviu. Modestamente, os jornalistas
estaremos celebrando o cinquentenário da apuração que Gay Talese
realizou em torno do aniversário de 50 anos de Sinatra. Desde então,
é impossível apreender o cantor — ou aprender jornalismo — sem
passar pelo perfil publicado na revista “Esquire” na edição de
abril de 1966.
No
final de 1965, Talese tinha 33 anos. Saíra do “New York Times”,
entre outras razões, porque sentia que havia histórias
inalcançáveis pelo onipresente lide (“Quem? O quê? Quando? Onde?
Como? Por quê?”, tudo respondido nas primeiras linhas de um
texto). A técnica era, e ainda é, lá como cá, útil para informar
de chofre o leitor sobre o que acabou de acontecer. Mas e se nada
está exatamente acontecendo?
A
pauta na “Esquire” tinha a banalidade das efemérides: Sinatra
estava fazendo 50 anos. E daí? Tivesse sido designada para olhos,
ouvidos e mãos menos hábeis que os de Talese, veríamos publicado
um perfil protocolar. Ok, o homem cuja voz — The Voice, que jamais
seria selecionada num programa homônimo de TV porque nunca, nunca
berrou ao microfone — embalara as relações sociais e sexuais de
duas gerações de americanos estava dobrando o Cabo da Boa Esperança
(morreria aos 82 anos, em 1998).
Talese
foi beneficiado pelo que a muitos repórteres pareceria um infortúnio
incontornável: Sinatra não estava disposto a falar com ele. Passou
cinco semanas entrevistando dezenas de membros do séquito do cantor
— inclusive a senhora que carregava a mochila com suas 60 perucas —
e outras seis organizando a apuração e escrevendo 55 laudas para a
“Esquire”. No Brasil, o resultado está publicado pela Companhia
das Letras com uma dúzia de outros textos dele em “Fama &
anonimato”.
Sinatra
não quis conversar com Talese porque estava furioso com a fofocada
em torno de seu namoro com a atriz Mia Farrow, então com 20 aninhos;
porque estava preocupado com um iminente especial da CBS que falaria
de sua vida privada e, dizia-se, de suas ligações com a máfia; e,
last but not least, porque em breve teria de gravar 18 canções para
um especial da NBC e estava resfriado. Talese percebeu que a mais
comum das doenças assumia, em se tratando de Sinatra, uma dimensão
apocalíptica. O repórter escreveria: “Frank Sinatra está
resfriado. Sinatra resfriado é Picasso sem tinta, Ferrari sem
combustível — só que pior”. Seu editor na revista, Harold
Hayes, teve a sensibilidade de alçar a primeira dessas frases a
título. Estava criado um clássico.
Sinatra
não quis conversar com Talese, mas tacitamente admitiu que até a
sua mamma, Natalina “Dolly” Garaventa, falasse ao repórter sobre
a marca das suas cuecas. Isto não é pouca coisa. Não pelas cuecas.
Pela mamma. Sinatra era apegado às coisas da Itália onde
seus pais haviam nascido. Os pais de Talese também tinham vindo da
Itália. Ele também era de Nova Jersey. E também se vestia com
extremo apuro. Um se enxergava no outro. Era preciso humanizar os
oriundi, sentia Talese. Nada melhor que mostrar que Sinatra —
Sinatra! — ficava resfriado. Sem escarafunchar suas conexões
mafiosas, mas sem deixar de mencioná-las no texto. Il Padrone,
está lá.
Hoje
com 83 anos, Talese desconfia da expressão “Jornalismo literário”,
associada a obras suas e de contemporâneos como Truman Capote e Tom
Wolfe. Acha que sugere invenção demais e apuração de menos,
desculpa para repórteres preguiçosos. O incansável Talese —
capaz de passar um jantar inteiro crivando seus comensais de
perguntas, mesmo sem nenhuma apuração específica em vista —
sempre gostou de cobrir esportes. Quando perguntado o porquê, logo
ele que fez “o” perfil de Sinatra, responde que é porque os
esportes dizem respeito mais a perdedores do que a vencedores.
No
texto de Talese para a “Esquire”, o maravilhoso e bem-sucedido
cantor ítalo-americano não chega a ser um perdedor, mas se
assemelha a um boxeador tentando recuperar o fôlego no seu canto do
ringue, cansado da sequência de jabes que o mundo acabou de lhe
desferir, sem conseguir falar, a respiração tornada curta por um
resfriado.
Arthur
Dapieve, in www.oglobo.com.br
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