terça-feira, 15 de dezembro de 2015

Gênesis (trecho)

Sentado no meio-fio, cavoucava com um graveto as fendas entre os paralelepípedos, esperando encontrar petróleo, ossos de dinossauro, tesouros escondidos por piratas, ruínas de extintas civilizações. Enquanto a sorte não vinha, contentava-me em desenterrar tampinhas enferrujadas, cascos de caramujo, fichas telefônicas; divertia-me desalojando minhocas, formigas e tatus-bola.
Não respeitava as minhocas: mal saíam da terra, começavam a se debater feito loucas. Bicho aflito, mau exemplo.
Não respeitava as formigas: indecisas, iam e vinham; burras, demoravam séculos para entender que bastava contornar a barreira surgida no meio do caminho (meu cuspe) para chegar lá — aonde quer que estivessem indo.
Toda reverência aos tatus-bola.
Tocava-os de leve para vê-los se fechar em suas esféricas armaduras, depois os rolava para cá e para lá.
Um dia, talvez influenciado pela semelhança visual e fonética entre bolas e balas, tentei comer um deles. Minha mãe (n)o(s) salvou na última hora, tirando-o da minha boca e devolvendo-o à terra ainda intacto.
Não ficou registrado na crônica familiar se alguma vez, longe da supervisão materna, eu e os tatus-b(a)ola chegamos às vias de fato.”
Antonio Prata, in Nu, de botas

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