sábado, 12 de dezembro de 2015

É conto ou crônica?

É muito comum entre alunos e leitores em geral a confusão entre o conto e a crônica. Em estado puro, de laboratório, como costumo dizer, são tipos de textos completamente diferentes.
Discordo da boutade de Mário de Andrade de que um conto é tudo aquilo que um autor decidiu chamar de conto.
Um conto é um conto, e uma crônica é uma crônica. E nem sempre o autor sabe o que está fazendo. Um conto, como um cristal de quartzo, tem uma estrutura específica, rege-se por leis internas, mimetiza um instante da realidade, ficcionaliza a vida, enquanto a crônica, por sua própria natureza, registra os fatos, a realidade contingente.
A rigor, o conto recria, enquanto a crônica documenta.
No entanto, nas últimas décadas, está se vendo, principalmente no Brasil, a emergência de um novo tipo de crônica, não mais histórica e meramente factual, mas uma inquietante mescla das modalidades épica e lírica, o que naturalmente produz uma confusão generalizada no espírito classificatório da teoria literária.
Por esse motivo, mesmo professores de literatura têm dificuldades em definir conto e crônica.
A principal diferença centra-se na figura do narrador, persona que a mímese instaura. (Reconheço que as teorias mais recentes sobre o poder de duplicação da linguagem — nomear é criar outra realidade — podem ser o calcanhar de Aquiles de uma tese que se centre neste elemento estrutural da narrativa, já que o eu que se diz no texto não é o eu que existe no mundo concreto. Logo, mesmo quando emite uma opinião pessoal, o autor cria um autor que não é o autor real. O argumento, derivado das noções lacanianas, implode a noção de sujeito da enunciação, sobre a qual a crônica se constitui. Para não instaurar o caos, é necessário aceitar que o sujeito da enunciação que fala na crônica é socialmente reconhecível, responde juridicamente pela sua opinião, enquanto o narrador, que se dá a conhecer num conto, é uma máscara, um papel, e nenhum tribunal condenaria um ator por fingir ser. Ao menos não nas democracias ocidentais.)
Para se compreender a ontologia da crônica, é preciso pensá-la em sua relação com a imprensa. Davi Arrigucci Jr. lembra que ela, embora nascida no jornal, não é apêndice dele, já que as melhores, geralmente, acabam em livros.
A grande circulação desse tipo de narrativa nos jornais brasileiros, fenômeno que acontece desde o século passado, vem produzindo, sem dúvida, uma “forma peculiar”, com “dimensões estéticas” e com uma “relativa autonomia”, mas sua razão de ser mergulha na natureza de nosso tempo.
A crônica, pelas astúcias da linguagem, instaura um interessante paradoxo linguístico. Etimologicamente, tem origem grega, provém de Khrónos. No entanto, o tempo, no interior da crônica, não transcorre, ela é intemporal, descritiva.
Por outro lado, o conto, do latim computus, que significa relato, narração, permite que o tempo exista em seu interior, já que ele narra ações de personagens num determinado tempo e espaço através da voz de um narrador.
Se o conto, como toda narração, mergulha no mito e o reinstaura; a crônica, por outro lado, debruça-se sobre a história, para aprisionar o aqui e agora.
Tentar uma definição da crônica talvez não fosse o mais adequado nesse instante em que ela, enquanto gênero, ainda está tomando forma, mas é algo tentador.
Davi Arrigucci Jr., por exemplo, estudando Rubem Braga, determinou seus contornos: “um ser moderno, constantemente estremecido pelos choques da novidade, de consumo imediato, a refletir as inquietações do desejo sempre insatisfeito, as violentas transformações sociais e a futilidade e fugacidade da vida moderna”.
Nesse sentido, a crônica seria ainda a cristalização do espírito das grandes metrópoles do capitalismo industrial contemporâneo, como o romance foi a contraparte artística da ascensão da burguesia no século XIX.
Para superar o seu destino etimológico, para sobreviver ao tempo de sua circulação nas páginas dos jornais e abrigar-se sob as capas duras, e supostamente perenes, dos livros, a crônica precisa ter “um razoável grau de elaboração linguística, certa complexidade interna, penetração psicológica e social, temperados com a força da poesia e do humor”.
Talvez o paradoxo maior da crônica seja superar seu próprio paradoxo: penetrar, como disse o crítico, a substância íntima de uma época, refletindo os pequenos atos que a compõem, e, ao mesmo tempo, suportar a corrosão do tempo e a irrefutável releitura das épocas futuras.
Charles Kiefer, in Para ser escritor

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