É
muito comum entre alunos e leitores em geral a confusão entre o
conto e a crônica. Em estado puro, de laboratório, como costumo
dizer, são tipos de textos completamente diferentes.
Discordo
da boutade de Mário de Andrade de que um conto é tudo aquilo
que um autor decidiu chamar de conto.
Um
conto é um conto, e uma crônica é uma crônica. E nem sempre o
autor sabe o que está fazendo. Um conto, como um cristal de quartzo,
tem uma estrutura específica, rege-se por leis internas, mimetiza um
instante da realidade, ficcionaliza a vida, enquanto a crônica, por
sua própria natureza, registra os fatos, a realidade contingente.
A
rigor, o conto recria, enquanto a crônica documenta.
No
entanto, nas últimas décadas, está se vendo, principalmente no
Brasil, a emergência de um novo tipo de crônica, não mais
histórica e meramente factual, mas uma inquietante mescla das
modalidades épica e lírica, o que naturalmente produz uma confusão
generalizada no espírito classificatório da teoria literária.
Por
esse motivo, mesmo professores de literatura têm dificuldades em
definir conto e crônica.
A
principal diferença centra-se na figura do narrador, persona
que a mímese instaura. (Reconheço que as teorias mais recentes
sobre o poder de duplicação da linguagem — nomear é criar outra
realidade — podem ser o calcanhar de Aquiles de uma tese que se
centre neste elemento estrutural da narrativa, já que o eu que se
diz no texto não é o eu que existe no mundo concreto. Logo,
mesmo quando emite uma opinião pessoal, o autor cria um autor que
não é o autor real. O argumento, derivado das noções lacanianas,
implode a noção de sujeito da enunciação, sobre a qual a
crônica se constitui. Para não instaurar o caos, é necessário
aceitar que o sujeito da enunciação que fala na
crônica é socialmente reconhecível, responde juridicamente pela
sua opinião, enquanto o
narrador, que se dá a conhecer num conto, é uma máscara, um
papel, e nenhum tribunal condenaria um ator por fingir ser. Ao
menos não nas democracias ocidentais.)
Para
se compreender a ontologia da crônica, é preciso pensá-la em sua
relação com a imprensa. Davi Arrigucci Jr. lembra que ela, embora
nascida no jornal, não é apêndice dele, já que as melhores,
geralmente, acabam em livros.
A
grande circulação desse tipo de narrativa nos jornais brasileiros,
fenômeno que acontece desde o século passado, vem produzindo, sem
dúvida, uma “forma peculiar”, com “dimensões estéticas” e
com uma “relativa autonomia”, mas sua razão de ser mergulha na
natureza de nosso tempo.
A
crônica, pelas astúcias da linguagem, instaura um interessante
paradoxo linguístico. Etimologicamente, tem origem grega, provém de
Khrónos. No entanto, o tempo, no interior da crônica, não
transcorre, ela é intemporal, descritiva.
Por
outro lado, o conto, do latim computus, que significa relato,
narração, permite que o tempo exista em seu interior, já
que ele narra ações de personagens num determinado
tempo e espaço através da voz de um narrador.
Se
o conto, como toda narração, mergulha no mito e o reinstaura; a
crônica, por outro lado, debruça-se sobre a história, para
aprisionar o aqui e agora.
Tentar
uma definição da crônica talvez não fosse o mais adequado nesse
instante em que ela, enquanto gênero, ainda está tomando forma, mas
é algo tentador.
Davi
Arrigucci Jr., por exemplo, estudando Rubem Braga, determinou seus
contornos: “um ser moderno, constantemente estremecido pelos
choques da novidade, de consumo imediato, a refletir as inquietações
do desejo sempre insatisfeito, as violentas transformações sociais
e a futilidade e fugacidade da vida moderna”.
Nesse
sentido, a crônica seria ainda a cristalização do espírito das
grandes metrópoles do capitalismo industrial contemporâneo, como o
romance foi a contraparte artística da ascensão da burguesia no
século XIX.
Para
superar o seu destino etimológico, para sobreviver ao tempo de sua
circulação nas páginas dos jornais e abrigar-se sob as capas
duras, e supostamente perenes, dos livros, a crônica precisa ter “um
razoável grau de elaboração linguística, certa complexidade
interna, penetração psicológica e social, temperados com a força
da poesia e do humor”.
Talvez
o paradoxo maior da crônica seja superar seu próprio paradoxo:
penetrar, como disse o crítico, a substância íntima de uma época,
refletindo os pequenos atos que a compõem, e, ao mesmo tempo,
suportar a corrosão do tempo e a irrefutável releitura das épocas
futuras.
Charles
Kiefer, in Para ser escritor
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