“Amanheci
em cólera. Não, não, o mundo não me agrada. A maioria das pessoas
estão mortas e não sabem, ou estão vivas com charlatanismo. E o
amor, em vez de dar, exige. E quem gosta de nós quer que sejamos
alguma coisa de que eles precisam. Mentir dá remorso. E não mentir
é um dom que o mundo não merece. E nem ao menos posso fazer o que
uma menina semiparalítica fez em vingança: quebrar um jarro. Não
sou semiparalítica. Embora alguma coisa em mim diga que somos
semiparalíticos. E morre-se, sem ao menos uma explicação. E o pior
– vive-se, sem ao menos uma explicação. E ter empregadas,
chamemo-las de uma vez de criadas, é uma ofensa à humanidade. E ter
a obrigação de ser o que se chama de apresentável me irrita. Por
que não posso andar em trapos, como homens que às vezes vejo na rua
com barba até o peito e uma bíblia na mão, esses deuses que
fizeram da loucura um meio de entender? E por que, só porque eu
escrevi, pensam que tenho que continuar a escrever? Avisei a meus
filhos que amanheci em cólera, e que eles não ligassem. Mas eu
quero ligar. Quereria fazer alguma coisa definitiva que rebentasse
com o tendão tenso que sustenta meu coração.
E
os que desistem? Conheço uma mulher que desistiu. E vive
razoavelmente bem: o sistema que arranjou para viver é ocupar-se.
Nenhuma ocupação lhe agrada. Nada do que eu já fiz me agrada. E o
que eu fiz com amor estraçalhou-se. Nem amar eu sabia, nem amar eu
sabia. E criaram o Dia dos Analfabetos. Só li a manchete, recusei-me
a ler o texto. Recuso-me a ler o texto do mundo, as manchetes já me
deixam em cólera. E comemora-se muito. E guerreia-se o tempo todo.
Todo um mundo de semiparalíticos. E espera-se inutilmente o milagre.
E quem não espera o milagre está ainda pior, ainda mais jarros
precisaria quebrar. E as igrejas estão cheias dos que temem a cólera
de Deus. E dos que pedem a graça, que seria o contrário da cólera.”
Clarice
Lispector, in A descoberta do mundo
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