Creio
que eram seis horas da manhã. Reparei pelas frestas da cortina que o
dia estava amanhecendo. O barulho era de tontear, algo de muito grave
deveria ter acontecido para um helicóptero ficar parado bem em cima
do meu edifício. Pior: ele parecia estar alinhado à minha janela.
Aos poucos fui voltando do sono e disse a mim mesma: deve ter
acontecido um assalto a banco, estão à procura de fugitivos.
Mas
o helicóptero, insistente, não voava para longe, parecia resoluto
em não se deslocar. Desisti de voltar a dormir, não conseguiria.
Levantei, fui até a sala, abri a porta de correr que dá para a
sacada e olhei para o céu. Nada. Então, olhei para baixo e ali
estava o helicóptero, estacionado num terreno descampado, ali diante
dos meus olhos o helicóptero que não era helicóptero, e sim um
equipamento de construção civil ligado na velocidade máxima, um
trambolho que fazia um barulho idêntico ao de um helicóptero, e que
continuaria a me servir de despertador nas manhãs seguintes.
Se
você é morador de uma grande cidade, também deve ter um
helicóptero matinal entrando pelos ouvidos, ou uma bateria de escola
de samba, ou uma turbina de avião, ou qualquer coisa excessivamente
barulhenta que seja oriunda do que se chama obra. Metrópoles estão
em constante construção. Aqui onde moro há essa obra bem em frente
ao meu prédio, e outra bem ao lado, e duas logo atrás. Silêncio?
Estamos em falta.
Não
há como reclamar para o bispo. Obras são efeitos colaterais do
progresso. E o barulho faz parte do pacote, não se ergue um edifício
aos sussurros.
Então,
como tenho escritório em casa, trabalho o dia inteiro com essa
trilha sonora pouco romântica. Desde a manhã até o final da tarde,
escrevo, escrevo, escrevo, e não ouço o toque dos meus dedos sobre
o teclado, ele é abafado pelos motores de equipamentos pesados,
caminhões despejando cimento, batidas de estacas, uma orquestra em
permanente ensaio, e só resta adaptar-me, um dia o edifício onde
moro também foi um esqueleto que não foi posto em pé quietinho.
Sou
uma escritora de apartamento, digo com o mesmo tom pejorativo que
classificamos crianças de apartamento. Deveríamos estar cercados
por jardins, margens de rio, praias abertas, mas vivemos confinados
entre quatro paredes que de certa forma aleijam a inspiração.
Escrever, lógico, me oferece várias oportunidades de fuga. Estou
onde estou, fisicamente, mas também não estou: invento meu próprio
lago, pátio, horizonte. Até que volto a ser atingida pela
consciência do inevitável: não é o barulho do mar que escuto, nem
o das folhas caindo nesse final de outono, e sim o de betoneiras,
perfuratrizes, compactadores, rolos compressores. De poético, me
restou apenas a chuva. Quando chove, a obra para. Quando chove, o
helicóptero some. Quando chove, o silêncio me pisca o olho:
“Aproveita a trégua e me escuta”.
Martha
Medeiros,
in A
graça da coisa
Nenhum comentário:
Postar um comentário