quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Um esplendório

Imaginei, a partir da flamante, ainda que sucinta, descrição do meu amigo, uma espécie de anjo iluminado. Supus um lustre. Acho que Félix exagerou um pouco. Numa festa, perdida entre o fumo e o tumulto, não teria reparado nela. Ângela Lúcia é uma mulher jovem, pele morena e feições delicadas, finas tranças negras à solta pelos ombros. Vulgar. E no entanto, sim, sou forçado a reconhecê-lo, a pele dela reverbera por vezes, sobretudo quando se comove ou se exalta, em cintilações de cobre, e nessas alturas transforma-se – torna-se realmente bela. O que mais me impressionou, porém, – foi a voz, rouca, e todavia úmida, sensual. Félix chegou a casa, esta tarde, trazendo-a adiante, como um troféu. Ângela Lúcia observou atentamente os livros e os discos. Riu muito com o aprumo austero de Frederick Douglass.
E este muadiê, o que faz aqui?
É um dos meus bisavôs –, respondeu-lhe o albino. – O meu bisavô Frederico, – pai do meu avô paterno.
O homem enriquecera no século XIX vendendo escravos para o Brasil. Após o fim do tráfico comprara uma fazenda no Rio de Janeiro e ali vivera longos e felizes anos. Regressara a Angola, já muito velho, trazendo consigo duas filhas, gêmeas idênticas, ainda moças. As más línguas não tardaram em tecer suspeitas sobre a improvável paternidade. O velho desmentiu-as, alegremente, emprenhando uma criada; fê-lo dessa vez com tal talento que dela nasceu um menino com uns olhos em tudo iguais aos do progenitor. Dava até medo olhar. O retrato ali exposto fora obra de um pintor francês. Ângela Lúcia perguntou se podia fotografar o retrato. A seguir pediu licença para o fotografar a ele, ao meu amigo, sentado no grande cadeirão de verga que o bisavô escravocrata trouxera do Brasil. A última luz da tarde morria docemente na parede atrás.
Uma luz como esta, acredita?, só encontrei aqui.
Disse que era capaz de reconhecer certos lugares do mundo apenas pela luz. Em Lisboa, a luz, no fim da primavera, debruça-se alucinada sobre o casario, e é branca e úmida, um pouco salgada. No Rio de Janeiro, naquela estação intuitiva à qual os cariocas chamam outono, e que os europeus afirmam com desdém ser puramente imaginária, a luz torna-se mais branda, como que um fulgor de seda, acompanhada por vezes de uma cinza úmida, que encobre as ruas, e desce depois lentamente, tristemente, sobre as praças e os jardins. Nos campos encharcados do Pantanal de Mato Grosso, de manhã bem cedo, as araras-azuis atravessam o céu, sacudindo das asas uma luz lúcida e lenta, que pouco a pouco pousa sobre as águas, cresce e se propaga, e parece cantar. Na floresta de Taman Negara, na Malásia, a luz é uma matéria fluida, que se cola à pele e tem sabor e cheiro. Em Goa, é ruidosa e áspera. Em Berlim o sol está sempre a rir-se, pelo menos desde o instante em que consegue furar as nuvens, como naqueles autocolantes ecologistas contra a energia nuclear. Mesmo nos céus mais improváveis Ângela Lúcia descobrira brilhos a merecerem ser salvos do esquecimento; antes de ter visitado os países escandinavos julgava que, por lá, nos meses eternos do inverno, a luz fosse uma mera conjectura. Mas não, as nuvens acendiam-se por vezes em largos clarões de esperança. Disse isto e levantou-se. Tomou um ar dramático:
E no Egito? No Cairo, já esteve no Cairo?, junto às pirâmides de Gisé?... Ergueu as mãos e declamou: “A luz cai, magnífica, tão forte, tão viva, que parece pousar sobre as coisas como uma espécie de névoa luminosa.”
Isso é Eça!. – O albino sorriu: – Reconheço-o pelos adjetivos, da mesma forma que seria capaz de reconhecer Nelson Mandela só pelas camisas. São, suponho, as notas que escreveu durante a viagem ao Egito.
Ângela Lúcia assobiou alegre, impressionada; bateu palmas. Era então verdade o que diziam dele, que lera os clássicos portugueses de fio a pavio, o Eça inteiro, o inesgotável Camilo? O albino tossiu, enrubesceu. Desviou a conversa. Disse-lhe que tinha um amigo, fotógrafo como ela, e que, também como ela, vivera muitos anos no estrangeiro e regressara há pouco ao país. Um fotógrafo de guerra. Não gostaria de o conhecer?
Um fotógrafo de guerra? – Ângela olhou-o horrorizada: – O que tem isso a ver comigo?! Nem sequer sei se sou fotógrafa . Eu coleciono luz.
Tirou uma caixa de plástico da carteira e mostrou-a ao albino:
É o meu esplendório –, disse: – slides.
Traz sempre com ela alguns exemplares dessas múltiplas formas de esplendor, recolhidas nas savanas de África, nas velhas cidades da Europa, ou nas cordilheiras e florestas da América Latina. Luzes, clarões, exíguos lumes, presos entre um caixilho de plástico, com as quais vai alimentando a alma nos dias de sombra. Perguntou se na casa havia um projetor. O meu amigo disse-lhe que sim e foi buscar a máquina. Minutos depois estávamos em Cachoeira, pequena cidade do Recôncavo Baiano:
Cachoeira! Cheguei num velho ônibus. Caminhei um pouco, com a mochila às costas, à procura de uma pousada, e dei com esta pracinha deserta. Entardecia. Uma tempestade tropical formava-se a oriente. O sol corria rente ao chão, cor de cobre, até bater de encontro àquela imensa parede de nuvens negras, para além dos velhos casarões coloniais. É um cenário dramático, não acha?” – Suspirou. Tinha a pele iluminada, os belos olhos rasos de lágrimas: – E então vi o rosto de Deus!
José Eduardo Agualusa, in O vendedor de passados

Nenhum comentário:

Postar um comentário